Podcasts, modernices e erros


As acções de divulgação científica requerem linguagem acessível e simples.
Esta condição não pode invalidar o fundamental: o rigor científico.
Quando se simplifica a linguagem e se quer ser correcto muitas coisas podem falhar de forma que o balanço dos dois factores – linguagem acessível e rigor científico – nem sempre é fácil.
Este ponderar a nem sempre é respeitado, como tenho verificado em especial no que diz respeito a conceitos da minha actividade profissional – evolução de vertebrados em especial de dinossáurios.
O que quero comentar surgiu na sequência da audição do 7º podcast da publicação on-line Ciência Hoje intitulado “Das galinhas pré-históricas a Robin dos Bosques com Leonardo da Vinci pelo meio”.
O podcast inicia-se com a descrição de um estudo feito a partir da análise de moléculas orgânicas provenientes ossos fossilizados de dinossáurios.
Algumas frases menos felizes, em termos evolutivos, dos autores do podcast.

“…estudo que demonstrou que os parentes mais próximos do Tyrannosaurus rex são, nada mais nada menos que as galinhas.” “…galinha era o organismo mais próximo do Tyranossauro rex”.

Estas afirmações estão incorrectas em dois pontos: o que o estudo veio confirmar foi a relação de parentesco entre os dinossáurios (concretizado neste estudo do T. rex) e as aves.
Embora se possa utilizar a metáfora (claramente apelativa, reconheço) que a galinha e o T. rex estão directamente relacionados é absolutamente errado dizer o parente mais próximo do gigante pré-histórico é a galinha.
A linhagem evolutiva da ordem Galliformes e família Phasianidae à qual pertence a galinha (Gallus gallus domesticus) não é o “caminho” evolutivo mais curto a partir dos Theropoda (dinossáurios carnívoros).
Há toda uma linhagem com dezenas de grupos e animais em clados intermédios e esquecer isso demonstra ignorância científica sob o ponto de vista evolutivo. Pode parecer um preciosismo mas não é. É apenas rigor científico que deve estar na base de qualquer produto de divulgação científica.
Era como descrever uma reacção bioquímica apenas referindo as moléculas iniciais e final esquecendo todos os passos intermédios – quantas vezes o desejei nas aulas de Bioquímica; mas não era possível, todos os compostos intermédios eram fundamentais para a compreensão de determinada reacção ou ciclo.

“…os pássaros descendem directamente dos dinossauros.”

Imaginei que se pretenderia utilizar a designação corrente da palavra pássaro; por isso fui consultar rapidamente o dicionário on-line da Porto Editora o qual referia: pássaro = substantivo masculino; popular- ave pequena; popular – indivíduo astuto; Ornitologia-ave pertencente à ordem dos pássaros.”
Obviamente que os autores do podcast pretendiam referir-se às aves (classe Aves) através da palavra pássaro; mas quer sob o ponto de vista popular (ave pequena) quer do ponto de vista ornitológico (ave pertencente à ordem Passeriformes) aquela utilização está errada e é enganadora.
Pássaros são aves pertencentes à ordem Passeriformes.
Dever-se-ia utilizar a palavra aves ou a Aves (para a classe Aves) senão como explicar que uma avestruz (que pelo tamanho mas sobretudo pela filogenia não é um pássaro ou pertencendo a Passeriformes) também descenda dos dinossauros?

“-…eu esperaria que espécies como o dragão de Komodo ou crocodilos, por se tratarem de répteis, fossem mais semelhante a um dinossauro que uma galinha. Não é esse o caso? -Na realidade, Alex, é provável que sim…”

De certeza que não.
As análises filogenéticas revelam todas que os parentes mais próximos dos dinossáurios são as aves. O clado Crocodylia está aparentado com os dinossáurios dentro do clado Archosauria (Aves+ Crocodylia ) mas os descendentes directos dos dinossáurios são as aves.
Apesar de aparentados, se tivermos que hierarquizar parentescos entre aves e crocodilos e os dinossáurios, as primeiras estão mais próximas dos dinossauros que os segundos.
No caso do dragão de Komodo o erro ainda é maior pois este animal descende evolutivamente dos répteis mesozóicos denominados mosassáurios – não são dinossáurios. A família Varanidae à qual pertence o dragão de Komodo (Varanus komodoensis) iniciou a sua divergência filogenética dos mosassáurios há cerca de 100 milhões de anos tendo o género Varanus o primeiro registo fóssil há cerca de 15 milhões de anos.

Por vezes o discurso directo, como o utilizado neste podcast, pode conduzir a reprodução menos correcta de conceitos científicos, baseados, por exemplo, apenas no “aspecto” ou “aparência” revelando um desconhecimento da história evolutiva de um grupo de vertebrados que “apenas” possui actualmente mais de 9000 espécies…

Apenas alguns exemplos de bibliografia que pode ser consultada:

Bell, G. L. Jr. and Polcyn, M. J. 2005. Dallasaurus turneri, a new primitive mosasauroid from the Middle Turonian of Texas and comments on the phylogeny of the Mosasauridae (Squamata). Netherlands Journal of Geoscience (Geologie en Mijnbouw) 84 (3):177-194.

Chiappe, L. 1995. The first 85 million years of avian evolution. Nature 378: 349-355.

Feduccia A. 1995. Explosive evolution in Tertiary birds and mammals. Science 267: 637-638.

Feduccia A. 2003. ‘Big bang’ for Tertiary birds? Trends in Ecology and Evolution 18: 172-176.

Lee, M.S.Y. 1997. The phylogeny of varanoid lizards and the affinities of snakes. Philos. Trans. R. Soc. London Ser. B 352, 53-91.

Livezey, B. C., and R. L. Zusi. 2007. Higher-order phylogeny of modern birds (Theropoda, Aves: Neornithes) based on comparative anatomy: II. – Analysis and discussion. Zoological Journal of the Linnean Society. 149: 1-94.

(figura adaptada de Feduccia 1995)

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