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ResearchBlogging.orgVenho discutindo nas últimas semanas a nossa maneira de priorizar a conservação das espécies. Comecei falando sobre como tendemos a focar nosso interesse apenas em salvar espécies bonitas e fofas, nos esquecendo das feias. Depois mostrei um cartoon do ilustrador finlandês Seppo que trata das espécies ameaçadas não lucrativas e como elas são deixadas de lado. Hoje vou falar sobre um verdadeiro “saco de gatos”, o termo Hotspot de Biodiversidade. Fiz uma pesquisa no último post que propositalmente coloca este termo sem explicar o que ele realmente significa. As respostas foram muito interessantes e mostram um pouco como esta confusão em relação ao termo pode direcionar o que as pessoas pensam não só sobre os biomas brasileiros, mas sobre como devemos investir na conservação de espécies em todo o mundo. Na continuação deste post vou falar um pouco sobre o histórico do conceito de Hotspot de Biodiversidade, o cenário atual e as devidas críticas.


Hotspot ?


O termo em inglês hotspot significa algo como um ponto quente, um ponto importante para alguma finalidade. Pensando em um hotspot de biodiversidade, a ideia que o termo passa para o público em geral é que estes pontos são lugares de alta diversidade de espécies e, desta forma, são tratados de forma diferenciada em relação a outros. Bem, na verdade o termo não representa bem isso. O responsável por cunhar este termo foi o britânico Norman Myers em um artigo publicado na revista The Environmentalist há 21 anos atrás. Neste artigo, Myers define como Hotspots áreas em florestas tropicais que se enquadrem em dois requisitos:

“a) Apresentem uma concentração de espécies excepcional com níveis de endemismo excepcionais , e que,
 b) Estejam diante de graus de ameaça excepcionais.”

Norman Myers, 1988, The Environmentalist

Sem contar a obsessão pelo termo “excepcional” e a falta de clareza em termos biológicos como “concentração de espécies”, Myers enquadrou 10 localidades em florestas tropicais como Hotspots de Biodiversidade.

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Hotspots de Biodiversidade em florestas tropicais. Fonte: Myers, 1988

Em 1990 o ambientalista britânico publicou um outro artigo no mesmo periódico iniciado com uma bela frase de impacto “Este artigo tem como objetivo acender uma luz sobre a extinção em massa que está tomando as espécies da Terra“. Pretensões grandiosas a parte, Myers acrescentou 8 Hotspots de Biodiversidade no seu mapa do mundo, incluindo agora áreas não tropicais.

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Hotsposts de biodiversidade acrescentados. Fonte: Myers, 1990

O critério para a escolha destes 8 novos Hotspots já se apresentava de forma mais clara, mas não menos polêmica.

“1) Número de espécies de planta originalmente existentes
 2) Número de espécies remanescentes hoje
 3) Número de espécies que provavelmente sobreviveriam no próximo século”

Norman Myers, 1990, The Enviromentalist

Você deve estar se perguntando, porque utilizar o número de espécies de planta para escolher Hotspots de Biodiversidade? A resposta é simples, mas a explicação é um pouco controversa. Segundo o autor, “Espécies de planta foram escolhidas como uma categoria indicadora de espécies ao invés de mamíferos, borboletas ou algum outro táxon, porque elas são as mais conhecidas dentre qualquer categoria com um grande número de espécies“. Ele continua “(…) uma flora rica permitiu a evolução de uma fauna de invertebrados similarmente rica. Como invertebrados constituem grande parte das espécies de animais, (…) é considerado que espécies de planta servem de forma adequada como espécies indicadoras“. Esta é apenas uma das extrapolações no mínimo estranhas feitas neste artigo. Depois o autor começa a fazer relações entre número de espécies de plantas extintas e número de animais extintos. Mas vamos deixar as críticas para o final.

Até então o conceito de Hotspots de Biodiversidade de Myers ainda estava restrito e era de pouco conhecimento do grande público. A popularização do termo veio através da adoção do conceito pela ONG americana Conservation Internacional. Em um trabalho conjunto, a ONG ambientalista americana e Norman Myers publicaram uma revisão do conceito em um livro e em um artigo no periódico científico Nature.  Dos 10 Hotspots levantados no artigo de 1988, agora o total chegava a 25. O critério de caracterização de áreas como Hotspots continuava o mesmo de 1990, priorizando número de espécies de plantas vasculares endêmicas (grupos taxonômicos restritos a uma determinada área) e o grau de risco pela perda de espécies nos últimos anos. Foram incluídos no artigo ainda dados de número de espécies de vertebrados, mas apenas como suporte e não como critério. As espécies de invertebrados não foram incluídas por falta de dados, mas, segundo os autores, a relação da perda de insetos (maior parte dos invertebrados) e plantas é proporcional, o que faria o critério das plantas representar bem os insetos na análise.

Hotspots de Biodiversidade no cenário atual

A Conservation International realmente abraçou o termo criado por Myers e mantem atualmente um sítio bem interessante sobre o tema. Em 2005 eles publicaram mais uma atualização dos Hotsposts, com um prefácio do Harrison Ford (?). No final das contas, temos atualmente 34 Hotspots. Para conhecer os 34 “escolhidos”, vale a pena a visita ao mapa interativo no sítio oficial. Para finalizar, o critério mais recente utilizado para definir uma área como Hotspot de Biodiversidade é o seguinte:

1) Deve conter, pelo menos, 1.500 espécies de plantas vasculares (> 0,5% do total do planeta) como endêmicas;
2) Deve ter perdido pelo menos 70% do seu habitat original.

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Capa do livro lançado em 2005. Alguém consegue ver uma lampreia no meio do orangotango, da onça e dos pássaros bonitos?

Pesquisa

Agora que entendemos o conceito de Hotspots de diversidade, podemos discutir melhor o resultado da pesquisa realizada no último post.

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Em primeiro lugar disparado t
ivemos o Cerrado e em segundo lugar de forma surpreendente, o Pantanal. Digo surpreendente pois o resultado que eu esperava seria a Amazônia em primeiro, sem concorrência. Tenho uma hipótese: os leitores podem ter achado que era uma pegadinha (Rááá!) e descartaram Amazônia logo de primeira e foram para o pantanal onde a grande biodiversidade é mais “visível”. Mas como vimos no início do post, o fator crucial para a descrição de um lugar como Hotspot de Biodiversidade é a percentagem de perda do habitat original. Desta forma, os únicos Biomas brasileiros que são considerados Hotspot de Biodiversidade são a Mata Atlântica e o Cerrado. A resposta correta da pesquisa seria então “Cerrado”, como marcaram 21 leitores. Muito obrigado ao Davi e ao Climber pelos comentários no post da pesquisa e as 39 pessoas que perderam o seu precioso tempo votando.

Uma boa dose de crítica

Até aí tudo é um mar de rosas. Escolhemos lugares baseados em um critério e assim podemos investir melhor o dinheiro e os esforços para a conservação das espécies mais ameaçadas. Mas será que é tão simples assim? A utilização do conceito de Hotspot como critério para a conservação vem sendo criticado desde a sua origem e, dentre os vários pontos que são criticados, os indianos Krishnankutty e Chandrasekaran ressaltaram os mais importantes em um artigo de opinião no periódico Current Science. Dentre os mais importantes, podemos citar:

  • Grande variação das áreas classificadas como Hotspots de Biodiversidade, dependendo do critério utilizado
  • Ignorar os fatores ecológicos, evolutivos e antropogênicos que fundamentam a origem e a manutenção da biodiversidade atual
  • Utilização de diferentes metodologias em diferentes estudos para determinar as áreas
  • Problemas de escala. Dependendo da escala em questão, áreas classificadas como Hotspots podem até não conter nenhuma espécie rara
  • O endemismo é o principal critério utilizado para classificação, mas pode ser muito fraco se levarmos em conta a falta de dados atualizados, estudos restritos a apenas algumas espécies e a utilização de estimativas.
  • Por último, mas não menos importante: a utilização de Hotspots é centrada em espécies e não em habitat. Cada vez mais vemos a grande importância dos serviços ecossistêmicos, que podem ser mantidos mesmo com a extinção de algumas espécies.

Uma parte das críticas feitas pelos autores indianos foram centradas em um relevante trabalho publicado na Nature em 2005. David Orme e colaboradores fizeram uma análise global da diversidade, comparando diferentes critérios para a escolha de áreas prioritárias para a conservação utilizando dados de aves. Qual o resultado? Falta de congruência entre Hotspots de diversidade, dependendo do critério utilizado para escolher essas áreas. A congruência representa a sobreposição dos Hotspots utilizando diferentes critérios. Se a congruência fosse alta, a utilização de Hotspots para a conservação independente do critério seria importante. O critério do endemismo foi o que trouxe os melhores resultados para aves, mas uma análise geral mostra que a utilização de índices múltiplos pode ser mais eficiente.

O fato de uma área ter ou não uma espécie endêmica é resultado de fatores históricos que podem variar muito com a escala do estudo. Selecionar grandes áreas, artificialmente acoplando regiões de histórias ecológicas e evolutivas diferentes, pode dificultar a escolha de áreas prioritárias.

Devemos jogar o conceito de Hotspots de Biodiversidade fora?

Mesmo com todas as críticas, o conceito criado por Norman Myers não pode ser desprezado como um todo. A ideia de que os recursos financeiros para a conservação são finitos e que devemos escolher prioridades é muito importante. Não conseguiremos salvar todas as espécies de animais e plantas do planeta, então manter foco é primordial. O debate sobre qual critério utilizar para definir estas prioridades é e sempre será motivo de polêmica. Um grande ganho ao debate atual está na introdução do conceito de “Diversidade de interações”, que tem como seu principal defensor o Professor titular da UNICAMP Thomas Lewinsohn. Ele passou de forma bem clara a sua opinião sobre o tema em uma entrevista recente.


“Em geral, as políticas ambientais de diversos países se baseiam apenas em dois tipos de informação: a contagem das espécies e sua distribuição geográfica, especialmente as que estão ameaçadas de extinção.

Quando temos acesso a informações de que um determinado lugar é
muito rico em espécies, esses dados por si só não nos dizem quais são
as perspectivas de manutenção dessas espécies em termos da viabilidade
de funcionamento do ecossistema.


Não há nada de errado nisso, ao contrário, essas informações são necessárias, mas não são suficientes por serem muito desvinculadas do processo de funcionamento dos ecossistemas como um todo. É preciso levar em conta também o que chamamos de diversidade de interação.

Os projetos de pesquisa não devem deixar de ter foco no estudo das espécies, mas devem abranger também os aspectos que funcionem como indicadores de funcionamento dos ecossistemas. A idéia de diversidade de interações é apenas uma maneira de ir em direção a esse objetivo. Devemos estender, do ponto de vista operacional, esse conceito de biodiversidade para incluir aspectos mais explicitamente vinculados com o funcionamento”

A nossa tarefa não é simples. Devemos investir em um melhor entendimento da complexidade natural dos ecossistemas e da heterogeneidade das respostas aos impactos antropogênicos. Se você pretende trabalhar um dia com biologia e conservação de espécies não desanime. Encare a complexidade do problema como um estímulo a investirmos cada vez mais em pesquisa básica e em pesquisadores. Este é o papel da ciência.

Referências:

Krishnankutty, N., & Chandrasekaran, S. (2007). Biodiversity hotspots: Defining the indefinable? Current Science, 92 (10), 1344-1345
Myers, N. (1988). Threatened Biotas: “Hot Spots” in tropical forests The Enviromentalist , 187-208
Myers, N. (1990). The Biodiversity challenge: Expanded Hot-spot analysis The Enviromentalist , 10 (4), 243-256
Myers, N., Mittermeier, R., Mittermeier, C., da Fonseca, G., & Kent, J. (2000). Biodiversity hotspots for conservation priorities Nature, 403 (6772), 853-858 DOI: 10.1038/35002501
Orme, C., Davies, R., Burgess, M., Eigenbrod, F., Pickup, N., Olson, V., Webster, A., Ding, T., Rasmussen, P., Ridgely, R., Stattersfield, A., Bennett, P., Blackburn, T., Gaston, K., & Owens, I. (2005). Global hotspots of species richness are not congruent with endemism or threat Nature, 436 (7053), 1016-1019 DOI: 10.1038/nature03850