Stravinsky, Roth e a Grand Place

Grand Place, Bruxelas, Bélgica 2011

Pessoas que me cercam costumam usar a palavra “atormentado” para definir um estado de espírito que, por vezes, me consome. Um estado de profunda introspecção e fixação por temas ou autores ou músicas ou qualquer que seja a peça intelectual que se encaixe nesse cenário. Não seria uma tristeza, nem um estado depressivo. É uma sensação de percepção de sangue correndo nas veias, de pensamentos trespassando o espírito, uma senciência do tempo; coisas assim. O que é engraçado nisso tudo é que volta-e-meia acabo arrumando uma relação entre esses vários objetos de temporária obsessão, relação que talvez só exista na minha cabeça, exímia em encontrar padrões onde, no mais das vezes, eles não existem. Quando existem, há quem chame essa visualização de intuição. E de repente, por uns breves segundos, intuímos um sentido para o mundo para logo depois, essa bruma de hiperconsciência se dissipar num cotidiano qualquer. Querem um exemplo?

Vamos com um fundo musical primeiro. Stravinsky. Estou fascinado por Stravinsky. Para se ter uma ideia do meu conhecimento de música erudita, raramente ouvi algo além de Bach (o velho) e Mozart (peças principais). Haendel (sinfonia aquática) é legal. Pronto, acabou. Não tenho ouvido para coisas muito complicadas e prefiro ritmos e improvisações. Villa-Lobos, só no violão do Egberto. No feriado, entretanto, vi o filme Coco Chanel & Igor Stravinsky de Jan Kounen. Desde então, escutei tudo o que pude de Stravinsky (além de descobrir em peregrinação frenética, que as grandes lojas de discos de São Paulo não sabem e não têm absolutamente nada sobre ele). Há uma música no filme, ironicamente chamada de “Les 5 easy piece pour piano solo” em seu primeiro movimento, um andante, que é, como diria, tenebrosa? Sombria? Mas ao mesmo tempo, prodigiosa na sua simplicidade. Depois disso, ouvi a Petrushka, as sinfonias para violino (sensacionais), ouvi tudo que consegui… A música de Stravinsky foi uma surpresa de grandiosidade para mim, como uma prosa nietzscheana, como uma explosão sexo-linguística em Miller, como a volúpia de uma cerveja na Grand Place em Bruxelas.

Fiquei também fascinado pela palavra nêmesis e por Nêmesis, a deusa. Descobri que há um livro chamado a “Nêmesis da Medicina” de Ivan Illich, veja só. Illich morreu em 2002 e no ano seguinte foi re-publicado um artigo – a partir de seu original no The Lancet de 1974 – com o resumo das ideias do livro no aniversário de seu falecimento (abaixo). A deusa Nêmesis é a deusa da vingança, mas não uma vingança qualquer. Ela personifica a vingança divina a quem sucumbe à hybris, uma mistura de soberba com “sem-noçãozismo”, que leva um mortal a “se achar” perante aos deuses e, obviamente, a fazer enormes besteiras. Illich começa o artigo com a seguinte frase (em livre tradução): “Nas últimas décadas a prática médica profissional tem se tornado uma grande ameaça à saúde.” Prossegue dizendo que “as assim chamadas profissões da saúde têm um poder morbidizante indireto – um efeito anti-saúde (healthdenying) estrutural.” Esta última sindrome, é batizada de Nêmesis Médica. Em uma interpretação particular do mito de Prometeu, Illich o coloca como vilão da história e o aproxima do “homem-comum” contemporâneo que provocou a inveja dos deuses e atraiu para si sua própria nêmesis. Nêmesis que agora se tornou endêmica, como um efeito colateral do progresso, disseminada em várias atividades, inclusive na própria medicina.

Nêmesis é também o título de um romance de Philip Roth (vejam interessante resenha no Amálgama). O livro é ambientado em Newark – EUA na época da epidemia de poliomielite bulbar que acometeu a América do Norte e a Europa na década de 50. (A mesma epidemia que possibilitou a criação das unidades de terapia intensiva). Nesse livro, a nêmesis é a pólio, veja só.

Fiquei ouvindo Stravinsky pelo YouTube do celular no carro no trânsito massacrante de São Paulo uma semana inteirinha. Fiquei lendo nêmesis, médicas e não-médicas, ouvindo Stravinsky. Comecei um romance sobre pólio, lembrei de viagens, praças, moças e cervejas… tudo ouvindo Igor (virei íntimo). Intui que isso talvez seja, precisamente, viver. Atormentado. O duro é viver comigo…

ResearchBlogging.orgIllich, I. (2003). Medical nemesis Journal of Epidemiology & Community Health, 57 (12), 919-922 DOI: 10.1136/jech.57.12.919

Discussão - 14 comentários

  1. Sibele disse:

    #KKilling!

  2. Felipe disse:

    Puts, fui ouvir e me senti num mix de "Tom e Jerry" e filmes românticos.

  3. Jorge Oliveira disse:

    Para a questão da Nêmesis recomendo o livro 'História da Arrogância', de Luigi Zoja e, para tormento e compulsão, 'Temperamento Forte - transtorno bipolar do humor' de Diogo Lara.

  4. Igor Santos disse:

    Ocupar o cérebro o máximo possível para evitar ouvir os próprios pensamentos. Sei como é.

  5. Chloe disse:

    Heeey, Doctor!
    Como assim vc não tem 'ouvido para coisas muito complicadas' e se apaixona por Stravinsky!?!?
    Fiz umas aulas de solfejo com um maestro, há uns 10 mil anos, ou mais, e ele sempre me dizia que um dia eu faria as pazes com a Sagração da Primavera. Ainda não tive coragem de me aproximar.
    Viver consigo mesmo é sempre o mais dificil.
    : /

  6. Karl disse:

    Me apaixonei pelo Stravinsky simples, hehe. O complicado vai ficar pra quando eu me puder entende-lo. Obrigado

  7. Chloe disse:

    Já ouviu Erik Satie?
    É ó oposto de Stravinsky: minimalista!
    Sua obra é simples, mas profunda; praticamente uma meditação.
    Também enfrentou uma certa rejeição à sua época, por ser considerado pouco convencional.
    Quando tiver um tempinho, ouça as Gymnopédies; gosto muito.
    ; )

  8. Chloe disse:

    Heeey Doctor,
    o que anda te atormentando ultimamente?
    Ouviu Erik Satie? Ele está na trilha do filme 'Paris', se quiser começar pelo filme, é bem bom. Fala sobre conflitos e transformações; novo x antigo; e sobre a proximidade da morte, do outro ou própria.
    Mas, nada a ver com isso, lembrei-me de vc hj. Ou desse estado que 'por vezes, te consome'. (Será que a 'morte' te consome às vezes...?)
    Meu profe estava falando do Sexto Empírico e sua idéia de que o homem filosofa para tentar sair de sua perturbação, na busca da ataraxia.
    Daí que a dica do 'cara' é a epokhé, rs...
    Mas não me parece que vc esteja procurando esse tipo de tranquilidade... : )
    Enfim, o Doutor chegou a ler as Hipotiposis Pirronianas?
    Soou como algo que combina com os pensamentos expostos neste blog. Ou não, de repente é só confusão minha; afinal, ainda estou em 2010! rs...
    Bom findi!
    ; )

    • Karl disse:

      Ouvi. E gostei. Obrigado.

      Não me agrada a ideia de enxergar a filosofia como meio para o "bem morrer". Substituir a religião por filosofia e/ou psicanálise não leva a lugares interessantes sob o meu ponto de vista. Recentemente, li um artigo interessantíssimo sobre como a filosofia foi (mal)usada para cumprir tais propósitos: The Philosopher-Priest and the Mythology of Reason de Manoussakis. É de livre acesso na rede. Confesso que meu conhecimento de filosofia medieval é faltante. Não li Pirro. Não sei se estou a procura de tranquilidade. Não se a procura é quem me tranquiliza.

  9. Chloe disse:

    Então, pelo pouco que ouvi hoje, a sequência seria assim:
    em busca da ataraxia (enquanto tranquilidade da alma), via posse da verdade, a pessoa se depara com a diafonia (variedade conflitante de discursos filosóficos).
    E, quando se analisada essa diafonia, constata-se a isosthenia (argumentos equilibrados em sua capacidade de persuasão).
    Ante a isso, faz-se a epokhé, ou a suspensão do juízo.
    Mas... é justamente ao se fazer essa suspensão do juízo que se chega à ataraxia!
    Pois deixa de se perturbar com o dilema.
    Até onde ouvi, não tinha entendido por esse viés consolador ou algo assim.
    Tive a impressão de que era mais no sentido do pensar mesmo.
    Mas também não li a obra citada, apenas tive contato com o assunto pela aula e outra palestra que tive, outro dia, sobre o Pirronismo.
    Vou procurar o artigo! Thx.
    Abç. ; )

  10. Fabiana disse:

    Ao buscar descrever a dialética entre “mesmidade” e “ipseidade” na constituição da... “identidade pessoal” (?) (o nome em si é complicado, porque, como ele mesmo diz, “identidade” implica um “idem” que o si-mesmo não é...), Paul Ricoeur, falando do conceito de “total ipseidade” de Parfit (algo assim como ser radicalmente um outro, mas difícil de explicar aqui), chama-o de “quase-budismo”... Ri alto com isso, achei uma sacada genial:

    “... a espécie de budismo que a tese moral de Parfit insinua consiste precisamente em não fazer diferença entre mesmidade e minha totalidade”...

    Então, sou árvore, formiga, pedra, me dissolvo no todo, não seria assim? 🙂

    Ricoeur não concorda com isso não, propõe outra coisa. Mas não vem ao caso agora.

    Fiquei só pensando, assim como quem não quer muito, se essa busca da “tranquilidade da alma” pela “diafonia” através da “epokhé” não seria também uma espécie de budismo... 🙂

    Também não gosto de “paz”. Prefiro a vida: história(s), intriga(s), conflito(s), chegada(s), partida(s), movimento(s), riso, dor, ritmo(s), intuição(ões) e tormento(s).
    O resto é morte.

  11. […] seja o último suspiro da nêmesis humana que foi a poliomielite e que ela sobreviva apenas em interessantes obras ficcionais como a de mesmo nome de Philip Roth. A SPP e as obras de arte servem para lembrarmos do medo e da […]

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