Fábricas de Ideologias

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Membro do Conselho de Educação da Fundação Rockefeller em palestra no Alabama,1914.
Cortesia da Fundação Rockefeller

“Nosso principal argumento é que a estrutura da educação médica moderna foi estabelecida há 75 anos atrás com o propósito de incorporar a revolução na ciência biomédica; ao atingir seus objetivos, acabou por definir a especialização altamente tecnológica como a principal meta para medicina clínica”.

Samuel Bloom, 1988[1]

“Medical education is inextricably tied to the health service system, and when questions arise about service, questions about education must follow”

World Health Organization 1972 (in [1])

A classe dominante organiza toda a vida nacional (social, cultural) construindo em torno do Estado um sistema de aparelhos (privados, semipúblicos e públicos) que constituem as diversas projeções da função de direção política na sociedade civil.

Antônio Gramsci (in Maquiavel, a Política e o Estado Moderno)

Ayres[2], em seu estudo Sobre o Risco (parece que há uma re-edição em português), conta a evolução e a importância do conceito de risco no pensamento médico atual. Em determinado momento do livro, ele põe sua extraordinária capacidade de análise para identificar as causas do pioneirismo dos EUA em relação ao desenvolvimento de um tipo de medicina social bastante peculiar que chama de “Nova Saúde Pública”. Dentre as causas citadas, temos:

  • herança anglo-saxônica. A medicina social desenvolvera-se de forma importante na Inglaterra vitoriana, mas por séculos, os ingleses já proporcionavam serviços médicos a sua população. Uma das prováveis razões disso pode ser o fato de Henrique VIII ter assumido tarefas para o Estado que eram responsabilidade da Igreja em outros países europeus [3, pág 90]. Outro fator é o desenvolvimento da estatística vital, apropriada a estudos populacionais, que iniciou-se no séc XVII e tinha o nome de “aritmética política”. A produção de dados populacionais trouxe à luz problemas que antes não podiam ser avaliados e transformou-se numa praxis.
  • Publicismo radical e privatismo pleno. Sem nos aprofundar em demasia, o espaço público americano parece ter amadurecido precoce e diferentemente do resto do mundo, em especial em função de um profundo individualismo. Nascido no bojo de um processo emancipatório, “a noção de público nos EUA tendeu, como talvez em nenhuma outra sociedade, a restringir-se estritamente às necessidades de compatibilizar e preservar os interesses privados” [2, pág 120, grifos meus]. Segundo Ayres, “democracia e individualismo foram tornando-se traços inseparáveis da própria identidade norte-americana”. É esta combinação peculiar e cheia de contradições que é chamada de publicismo radical e privatismo pleno pelo autor.
  • O Puritanismo. Ao propor uma forma de ascetismo laico, já destacada por Weber, fundamental para construção de uma ética do trabalho, o puritanismo oferece uma justificativa terrena para a acumulação e a filantropia.
  • O Pragmatismo de William James (médico da Harvard) e John Dewey. Para Dewey, “o indivíduo era o fundamento e a medida da retitude, verdade e legitimidade de qualquer projeto generalizador. Ao mesmo tempo, só no âmbito da experiência pública da vida cotidiana é que o indivíduo pode se dar conta de forma concreta destas aspirações”[3, pág. 124]. Todo seu humanismo estava radicalmente embasado num individualismo filosófico.
  • Darwinismo social (confira também este texto para uma referência mais abrangente, em inglês). Sua importância reside, grosso modo, numa “justificação científica” para a riqueza algumas sociedades, consideradas “mais aptas”, e a pobreza de outras, “menos aptas”. De forma geral, o capitalismo assimilou, algo distorcidamente, as ideias do darwinismo social, mas em especial, a centralidade do conceito de competição e sobrevivência do mais apto foram fundamentais para isso.

Tímidas tentativas preliminares de organização da saúde pública norte-americana, entretanto, foram rechaçadas com a argumentação de que os “estados tinham seus direitos ameaçados pela ingerência do governo federal em sua próprias esferas” (pag.122). Porém, em 1872, finalmente, foi estruturada a American Public Health Association (APHA). A APHA congregou vários especialistas de vários estados atuando na área de saúde pública e tornou-se um dos porta-vozes da onda “humanista” que se levantou contra o radical e “prejudicial laissez-faire que se sucedeu à vitória do projeto liberal e industrialista na Guerra de Secessão”. Explica-se, assim, um certo consenso surgido à época em relação a uma intervenção sanitária como forma de resolver os enormes problemas gerados pela industrialização vertiginosa que ocorria. Algo precisava ser feito, mas como? Qual projeto deveria ser levado adiante?

Aqui a história ganha ares de roteiro cinematográfico. Quando a Fundação Rockefeller resolveu financiar sozinha uma escola de saúde pública, havia nessa época, segundo alguns autores citados por Ayres [2], três propostas concorrentes de abordagem do problema sanitário norte-americano. A primeira, de caráter ambientalista, era um projeto conjunto da Harvard e do Massachussets Institute of Technology (MIT) em Boston e enfocava o saneamento do meio externo com um forte embasamento bacteriológico. A segunda, que pode ser chamada de sócio-política, era sediada em Nova York e, mais precisamente, na Universidade de Columbia, entendendo o “desafio da saúde pública sob uma perspectiva mais integral, com reformas na organização dos modos de vida, da estrutura do Estado, das legislações, etc”. O terceiro perfil de proposições era de cunho biomédico. Surgido numa escola mais nova e de menor tradição que as outras duas citadas acima, “sustentava que a saúde pública devia ser entendida e estudada sob o mesmo ângulo biológico-experimental que fundamentava a medicina moderna como um todo” (pág 127). Quem vocês acham que recebeu o dinheiro da Rockefeller? Isso mesmo, caro(a) leitor(a): situada em Baltimore, Maryland, a Johns Hopkins tinha como presidente (o primeiro, aliás) o bem-articulado e visionário Daniel Coit Gilman.  Daniel desempenha um papel de importância nessa decisão. Ele havia sido conselheiro da Fundação Russell Sage, cujos recursos centralizaram a coordenação do movimento de organizações de caridade no pós-guerra civil, em especial, com intenção declarada de combater ideologias socialistas em voga na época. Daniel pertenceria ainda ao próprio General Education Board da Rockefeller e, após aposentar-se da Johns Hopkins em 1901, aceitou a presidência do recém-fundado Instituto Carnegie em Nova Iorque (1902-1904). Trafegou, portanto, com extrema facilidade e desenvoltura no “universo filantrópico” norte-americano do começo do século XX.

Entre as grandes mudanças impostas por Daniel Gilman na Johns Hopkins está a junção orgânica da faculdade de medicina com seu hospital-escola com base numa fusão peculiar dos modelos germânico e inglês que conhecera em viagem à Europa após sua formatura. Para ele, os departamentos de ambas instituições deveriam trabalhar em conjunto, filosofia seguida até hoje em várias escolas de medicina ao redor do mundo. Além disso, os médicos deviam também ser bons cientistas. Em 1884, o primeiro médico que Daniel recrutou para trabalhar, ao mesmo tempo, como professor e assistente do hospital, foi o microbiologista, patologista e general de brigada do exército americano William Henry Welch, que trabalhara, por sua vez, com ninguém mais, ninguém menos que Max von Pettenkofer no Instituto de Higiene de Munique e com Robert Koch (descobridor, entre outros feitos, do bacilo da tuberculose) na Alemanha. Daniel e William tinham mais coisas em comum que suas “germanofilias”. Ambos foram formados em Yale e lá participaram das atividades de uma fraternidade semi-secreta chamada de Skulls and Bones, fonte de inúmeras teorias conspiratórias e filmes. Welch, em 1894, tornou-se o primeiro diretor da Johns Hopkins University School of Medicine e, em 1916, o primeiro diretor da Johns Hopkins School of Hygiene and Public Health, a primeira escola de saúde pública dos EUA e que ditaria a forma como as políticas sanitárias norte-americanas seriam conduzidas nos anos seguintes.

Ayres chama atenção, já no parágrafo seguinte a essa discussão, para a estranheza do fato de uma instituição privada financiar outra de grande importância para as políticas públicas de uma nação. Contudo, me parece que as bases do pioneirismo estadunidense listadas acima (a falácia do darwinismo social, o publicismo radical e o privatismo pleno, o individualismo filosófico e o puritanismo), são já indícios de uma intervenção fortemente ideologizada do privado em direção ao público. De fato, como chamam atenção Sheila Slaughter e Edward Silva [4], uma reação ao caldo ideológico fervilhante que decorreu das crises político-econômicas geradas pela rápida industrialização dos EUA no pós-Guerra Civil parece ter sido o detonador de tais ações. Para eles, uma ideologia permite três eixos explicativos de uma realidade sócio-política: a) identifica quem exerce o poder e em que condições; b) oferece um critério moral de avaliação das decisões tomadas por quem exerce o poder e, por fim; c) esse caráter descritivo de (a) associado ao valorativo de (b) incitam à ação coletiva, seja em defesa do status quo ante, seja contra sua permanência. “Ideologias inibem ou inspiram movimentos sociais”. Várias correntes ideológicas eram politicamente ativas nessa época turbulenta, em especial, as consideradas de inspiração marxista, radicais questionadoras das relações entre trabalho e capital que eram, então, o fulcro dos conflitos. Escrevem Slaughter e Silva (em tradução minha):

Já que ideologias fornecem o fermento social para ações políticas coletivas, os detentores de recursos preocuparam-se eles mesmos em intervir no processo de formação ideológica (…). Na medida em que as fundações filantrópicas no período progressista foram criadas (…) colocaram-se vastos recursos à disposição de alguns, promulgando ideologias (…) (e) disseminando visões de mundo que apoiavam o status quo.

O fenômeno social que convencionou-se chamar de filantropia em larga escala (wholesale philantropy) ocorreu apenas nos Estados Unidos da América, iniciando-se pouco antes da Guerra Civil (1861-1865) mas perdurando, ainda que sem a volúpia de seus anos de ouro, até hoje. Um movimento em concerto, de tal magnitude e alcance tão extenso e profundo, não poderia ser obra de poucos ou ter apenas um punhado de causas. Tampouco, mereceria ficar restrito ao território americano. É o que veremos nos próximos posts.

 

Referências Bibliográficas

[1] Bloom SW (1988). Structure and ideology in medical education: an analysis of resistance to change. Journal of health and social behavior, 29 (4), 294-306 PMID: 3253321

[2] Ayres, JRCM. Acerca del Riesgo: Para comprender la epidemiologia. 1a ed. Buenos Aires. Lugar Editorial. 2005, pag 119-135.

[3] Buck, C; Llopis, A; Nájera, E; Terris, M (orgs) El desafio de la epidemiologia: problemas y lecturas seleccionadas. Washington, 1988. (OPAS n. 505).

[4] Slaughter, S and Silva, ET. Looking Backwards: How Foundations Formulated Ideology in the Progressive Period. in Philantropy and cultural Imperialism: the foundations at home and abroad. Edited by Robert F. Arnove. Indiana Press. 1980. pg 55-86.

Ao Cientista Totalitário

“Na colocação dos problemas histórico-críticos, não se deve conceber a discussão científica como um processo judiciário, no qual há um réu e um promotor, que deve demonstrar, por obrigação de ofício, que o réu é culpado e digno de ser tirado de circulação. Na discussão científica, já que se supõe que o interesse seja a pesquisa da verdade e o progresso da ciência, demonstra ser mais avançado quem se coloca do ponto de vista de que o adversário pode expressar uma exigência que deva ser incorporada, ainda que como momento subordinado, na sua própria construção. Compreender e valorizar com realismo a posição e as razões do adversário (e o adversário é, em alguns casos, todo o pensamento do passado) significa justamente estar liberto da prisão das ideologias (no sentido pejorativo, de cego fanatismo ideológico), isto é, significa colocar-se em um ponto de vista crítico, o único fecundo na pesquisa científica”.

O texto é de Antonio Gramsci e foi escrito entre 1932 e 1933 e serve não apenas para a colocação de problemas histórico-críticos. Serve para a vida. Nenhum tipo de totalitarismo é aceitável. Também o da ciência não o é. Pense nisso quando for discutir “cientificamente” da próxima vez. Você não tem a verdade, tem apenas um modelo capaz de prever resultados de um número limitado de experimentos. A Verdade é outra coisa…

Consultei a excelente coletânea de Carlos Nelson Coutinho “O Leitor de Gramsci”. Ed. Civilização Brasileira.