Evolução não é um fato. Parte 1: Parentescos

Então, tanto Dawkins quanto Gould parecem acreditar que evolução, além de ser uma teoria, é um fato, e que um bom exemplo desse fato são nossas relações de parentesco e ancestralidade com outros primatas.

Ok, então evolução é um fato. Mas, o que é um fato?

Fatos podem ser entendidos como aquilo que torna uma afirmação verdadeira, e se relaciona de alguma alguma forma a algum aspecto da realidade. Por exemplo, quando afirmo que “Elefantes possuem trombas”, tal afirmação apenas é verdadeira, se elefantes apresentam um nariz modificado em um apêndice longo, o qual chamamos de “tromba”.

Então fica a pergunta: qual é exatamente o fato “evolução”, e a qual afirmação que ela se refere? Muitas vezes não está exatamente claro o que o fato “evolução” exatamente é. No caso da passagem do Gould e do Dawkins, o que é chamado de “fato” são as relações de parentesco entre humanos e chimpanzés, enquanto a Teoria Evolutiva seria o que explica como tais grupos se diferenciaram e quais forças evolutivas atuaram para diferencia-los (ex: seleção natural, deriva genética, etc). A principio parece tudo OK do ponto de vista científico, pois temos um fato que é tentativamente explicado por um modelo teórico (uma teoria). Porém, quando tentamos elaborar uma afirmação verdadeira que faz referência ao fato da ancestralidade comum entre chimpanzés e humanos, encontramos um problema: qual é o fato que torna “chimpanzés e humanos são parentes” uma afirmação verdadeira?

O primeiro a abordar essa questão de maneira sistemática foi Carl Linnaeus, o cara que inaugurou o esforço moderno de classificação da biodiversidade. Avaliando as características de humanos e outros animais, Linnaeus chegou a conclusão de que humanos pertencem à mesma classe de animais que os grandes primatas sem rabo. Desde então, os avanços da biologia molecular tem reforçado a idéia de que humanos são intimamente relacionados com os grandes primatas, especificamente, os chimpanzés.

Porém a questão aqui se complica. A área acadêmica que estuda as relações de parentesco entre espécies   (a sistemática filogenética) não é um mero exercício de diagnose de fatos*: existem diversas linhas concorrentes que disputam qual seria a melhor maneira (se é que ela existe) de se reconstruir as relações de parentesco entre as espécies, sendo que algumas delas (ou todas elas) partem de premissas biológicas explicitamente evolutivas. Em outras palavras, se a relação de parentesco entre humanos e chimpanzés é um “fato”, tal “fato” é fortemente dependente de premissas teóricas.

E não apenas isso: as relações observadas estão longe de ser inequívocas.

Recentemente Grehan & Schwartz (2009) publicaram uma análise que, ao contrário da maioria dos trabalhos atuais, colocava humanos como parentes mais próximos de Orangotangos, e não de Chimpanzés. A conclusão é claramente um absurdo pois viola quase tudo o que sabemos sobre a genética dessas espécies. Porém os autores foram cuidadosos o suficiente para fazer um arranjo metodológico tão fechado, que a conclusão das analises era inequívoca, e a publicação do trabalho não poderia ser recusada, mesmo que violasse o que toda a comunidade científica acreditava sobre o assunto.

Isso mostra duas coisas. Primeiro – e isso é uma digressão – que o mimimi de criacionistas e proponentes de Design Inteligente (um famoso exemplinho aqui) de que são incapazes de publicar em periódicos científicos por causa do lobby materialista é pura bobagem. Trabalhos bem feitos, honestos e rigorosos podem sim ser publicados, independente das ideologias ou opiniões de revisores. Criacionistas não conseguem publicar simplesmente por serem incompetentes, ou porque não sabem/querem fazer ciência. Fim da digressão.

O segundo ponto, voltando ao assunto, é que tal reconhecimento de “fatos” (e.g. o “fato” do parentesco entre chimpanzés, humanos e lesmas) está longe de ser a prova de falhas e inequívoco, precisamente porque tal parentesco não é fato, mas uma hipótese. E se alguem continuar insistindo que as relações de parentesco são fatos, pergunte: quais são os fatos que tornam essa afirmação verdadeira. Aposto que rapidamente serão mencionadas montanhas de dados, desde evidência morfológica, registro fóssil e dados moleculares (aqui para uma lista simplificada). Mas nenhum desses fatos (e aqui são fatos mesmo) é o grau de parentesco (ou “evolução”, como usado por Gould e Dawkins), mas sim eles sustentam uma dada hipótese de parentesco.

Nada disso é controverso. Pesquisadores da área não se referem às relações de parentescos como fatos, mas sim como hipóteses, mais especificamente, hipóteses filogenéticas. Tais hipóteses são constantemente modificadas e refinadas, muitas vezes sendo radicalmente reformuladas pela descoberta de uma nova fonte de dados moleculares ou fósseis, por exemplo. E o ponto é: isso acontece exatamente porque relações de parentescos entre espécies não são fatos, mas sim conclusões dependente de teorias e de fatos. O acumulo de evidências que contrarie um certo cenário evolutivo pode derrubar tal cenário em favor de outro, como acontece com qualquer hipótese científica.

Resumindo: dizer que parentesco entre espécies é um fato é cometer uma falácia de equivocação, chamando uma hipótese (filogenética) de fato.

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* Existem sim pesquisadores que acreditam que sistemática filogenética é apenas isso, mas isso é outra discussão.

Referência Grehan, J., & Schwartz, J. (2009). Evolution of the second orangutan: phylogeny and biogeography of hominid origins Journal of Biogeography, 36 (10), 1823-1844 DOI: 10.1111/j.1365-2699.2009.02141.x

6 respostas para “Evolução não é um fato. Parte 1: Parentescos”

  1. Quando as hipóteses são sustentadas e provadas não significa que é um fato?Se eu pego uma hipótese, provo que é verdade, nenhum argumento contesta a veracidade dessa hipótese, então não é um fato?Você pegou um exemplo fechado entre homem e chimpanzé, que não foi encontrado o elo perdi, quando a temática é ampla e se refere a todas as espécies. Visto isso, é fácil notar elos perdidos que provam o fato de que houve evolução. No próprio gênero homo e austrolopithecus isso é nítido. O Homo Habilis por exemplo é um elo perfeito entre austrolopithecus e homos.

    1. Ola Pedro,"Quando as hipóteses são sustentadas e provadas não significa que é um fato?"Você pode muito bem usar o termo 'fato' para se referir a 'hipóteses são sustentadas'. Mas o que eu defendo (e pelo que vi, muitos epistemologos também), é que fatos e hipóteses não são diferentes pelo nosso grau de certeza sobre sua veracidade (isso seria mais referente a crença e conhecimento), mas porque possuem características distintas.A tradução disso para o contexto da prática científica, ao meu ver, é exatamente o que coloquei: fatos não são falseaveis, eles são dados, e hipóteses são falseáveis.Curiosamente, eu posso pensar em diversos casos onde hipóteses filogenéticas são consideradas "dados", mas isso não alterou sua estrutra básica: elas continuam sendo contingentes a outros dados (sem aspas), como sequencias de DNA ou fenótipos. Na minha concepção, essas filogenias ainda figuram como hipóteses, e não fatos."Visto isso, é fácil notar elos perdidos que provam o fato de que houve evolução."Eu discordo (apesar de eu imaginar que Gould concordaria). Fosseis de transição só podem figurar como "prova", se inseridos em uma analise filogenética. É o posicionamento do taxon em uma hipótese filogenética que dá a sequência de transformação de um dado caractere, permitindo afirmar o status transitório de um certo caractere. Sem uma análise filogenética apropriada, um caractere tido como transitório pode na verdade ser, bem, qualquer outra coisa: derivado, primitivo, homoplástico...

  2. Quanto ao artigo do Orangotango, eu não li, mas baseando no que você disse, como ela pode ser inequívoca e absurda ao mesmo tempo? Ora se a conclusão viola quase tudo o que sabemos de genética, a conclusão está equivocada. Certamente ele usou um raciocínio que não sustenta a premissa.

    1. Quando afirmei que era inequivoca, quis dizer dentro do contexto da análise. Resumidamente, o que os autores fizeram foi pegar caracteres que eram aceitos por todos primatologistas e antropólogos como "válidos" e utilizaram uma analise bem estabelecida para produzir uma filogenia. Com inequivoca, quis dizer que não há falha metodológica que possa justificar o resultado, ao nosso ver, equivocado.Claro, as razões para isso podem ser diversas, desde a natureza dos caracteres morfológicos utilizados, ou mesmo que o consenso entre primatologistas e antropologos, no que tange os caracteres, está errada. Porém, como nada disso foi abordado explicitamente na literatura, basicamente porque esses caracteres foram abandonados como fonte de informação filogenética com o advento da biologia molecular, tanto críticas quanto corroboração da validade de tais caracteres, ao meu ver, ficaram estagnadas no tempo, coisa que foi explorada pelos autores.Ou seja, os autores poderiam ter explorado essa discrepancia entre dados morfológicos e moleculares de qualquer maneira, inclusive para criticar os dados usados classicamente por morfologistas. Porém optaram por seguir na linha que eles seguiram, e racionalizar a discrepancia usando uma explicação de genética populacional que é... possivel, porém altamente improvável. Somando a isso o fato dela ter uma montanha de evidencias moleculares contrárias, considero que ela seja absurda.

    2. Talvez o principal problema ai seja a questão da utilização de dados moleculares e fenotípicos de forma irreconsiliavel, com o mesmo objetivo.Isso é um problema grande da sistemática, e que não acho que será solucionado tão facilmente.

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