Breve História do Pó: o fim da carreira

Os doutores do pó também não levaram muito a sério os alertas dos colegas limpos. Muitos sequer admitiam que estavam em risco, ainda que fossem consumidores contumazes tanto de coca quanto de morfina. Com o fácil acesso que tinham à cocaína, não é de se estranhar que, por volta de 1901, uns 30% dos cocainômanos dos Estados Unidos fossem médicos e dentistas. O caso de William Steward Halsted (1852-1922) é exemplar.

Halsted era um dos mais eminentes cirurgiões dos Estados Unidos e um campeão da medicina anestésica. Foi, inclusive, um dos fundadores do John Hopkins Hospital em 1889. Além de seus trabalhos com anestesia, o Dr. Halsted conduziu uma das primeiras operações de bexiga na América (em ninguém menos que sua própria mãe!), além da primeira mastectomia radical. Em 1891, Halsted foi o introdutor de um acessório importantíssimo nas salas de cirurgia: luvas de borracha.

Seu primeiro contato com a droga foi através de um artigo de um jornal médico europeu de 1884, que descrevia a cocaína como alternativa segura para a morfina na anestesia (e há quem diga que a literatura científica não é tóxica!). Depois dessa leitura, Halsted decidiu fazer suas próprias experiências. Em colaboração com seus estudantes e diversos médicos, ele injetou cocaína em si mesmo e em terceiros com o objetivo de desenvolver seu uso como anestésico. Nisso teve sucesso, pois desenvolveu o primeiro bloqueio nervoso prático para eliminar a dor durante as operações. Porém, o Dr. Halsted não tinha a menor ideia dos riscos com que estava lidando.

Como um de seus alunos, Wilder Penfield (1891-1976), escreveria mais tarde, “os braços da fome da cocaína prendiam-no num abraço cada vez mais apertado”, o que levou a um “período confuso e inválido de prática médica”. Para salvar sua carreira e evitar riscos aos seus pacientes, William S. Halsted foi mandado pra rehab no Butler Sanatorium, em Providence, Rhode Island.

Não que houvesse uma rehab naquele tempo, é claro. Se hoje — quando o mecanismo de dependência química é claramente compreendido — o tratamento nem sempre funciona, imagine numa época em que o problema era inédito e os casos de dependência, raros. Numa estratégia que nos parece bizarra, os médicos tentaram trocar um vício do Dr. Halsted por outro.

A adicção por morfina lhes parecia menos grave que a por cocainomania, então passaram a servir pequenas doses de morfina ao famoso cirurgião. Halsted ficou internado por apenas um ano e saiu da rehab com dois vícios em vez de um (não muito diferente de alguns popstars de hoje). Embora tenha conseguido retomar sua carreira (a profissional, não a de pó), “o brilhante e alegre extrovertido não parecia mais brilhante nem alegre”, segundo um observador anônimo. Com a saúde deteriorada pelo duplo vício, o Dr. Halsted ainda seria internado diversas vezes pelo resto da vida. Embora tenha conseguido parar de consumir coca, jamais conseguiu se recuperar da dependência química. Especialmente a de morfina.

William S. Halsted (1922)

Segundo uma carta escrita por seu colega, o Dr. William Osler (1849-1919), Halsted continuou a consumir uma dose diária de três grãos (200mg) por dia. Secretamente, é claro, já que a carta só foi descoberta em 1969. Embora tenha conseguido reduzir essa dose de morfina pela metade, Halsted acabaria “lutando contra o terrível desconforto da fome de droga” pelo resto de sua vida. Numa carta que escreveu para Osler em 1918, Halsted relata que três de seus assistentes tornaram-se viciados em coca e sucumbiram ao vício sem sequer lutar contra sua dependência. Em suas cartas, Halsted admitiu até que os artigos sobre cocaína anestésica que escreveu entre 1884 e 1885 foram redigidos sob influência da coca. Ele os considerou “não creditáveis”, reconhecendo que “não estava em boa forma” quando os escreveu.

Observando bem, a influência do pó é visível na gramática e na sintaxe destes artigos. Eis a primeira sentença de um desses papers sobre cocaína:

Nem indiferente quanto à qual de tantas possibilidades possam melhor explicar, nem ainda numa perdição de compreensão, porque os cirurgiões têm, e que são tantos, com bem pouco descrédito, poderiam ter exibido escassamente qualquer interesse no que, como anestésico local, como se supunha, quando não se declarava, por muitos de comprovação certa, atrativa, especialmente para eles, ainda não penso que esta circunstância, ou algum sentido de obrigação para resgatar reputação fragmentária para cirurgiões antes que uma crença de uma oportunidade existisse para assistir outros em extensão apreciável, convenceu-me, há muitos meses, a escrever sobre o assunto à mão em grande parte de um paper algo compreensível, que a pobre saúde desinclinou-me de completar.

Se está difícil de entender esta tradução, tente o original [vide referência abaixo]. De qualquer modo, mais parece literatura pós-moderna (em pleno século XIX!) do que um artigo científico (ainda que muitos papers sejam igualmente herméticos). Só para os (muitos) médicos chapados a literatura sobre cocaína deve ter feito sentido.

The Four Doctors (1905): os quatro fundadores do Johns Hopkins Hospital. Da esq. p/ dir.: William H. Welch, William S. Halsted, William Osler e Howard Kelly.

De algum modo, Halsted conseguiu terminar sua carreira profissional de maneira relativamente bem-sucedida. Apesar da dependência de morfina, ele foi capaz de esconder os sinais de seu vício tanto de seus colegas quanto dos seus alunos e pacientes. Quando Halsted faleceu, vítima de pneumonia, em 1922, os obituários louvavam sua expertise, seu pioneirismo na educação cirúrgica e seu papel na fundação do John Hopkins Hospital. Os vícios do Dr. Halsted foram segredos bem-guardados nos corredores do John Hopkins.

Enquanto o Dr. Halsted envelhecia e morria, o cerco contra a cocaína se fechava. E o que era um problema de saúde não tardou a ser visto como questão criminal, especialmente numa época de darwinismo social. Delegados passaram a falar publicamente na relação entre o pó e atos criminosos. Com medo de serem ligados a crimes, os farmacêuticos começaram a deixar de encomendar cocaína de seus fornecedores. Mesmo sabendo que a cocaína tinha se espalhado a partir dos médicos e das classes altas, os jornalistas, os reformadores sociais e os religiosos moralistas passaram a acusar esses “negros cocainistas”, sempre prontos a influenciar as “classes baixas” com suas drogas, colocando toda a segurança pública em risco.

Apesar do crescente clamor popular, a criminalização da cocaína nos Estados Unidos foi relativamente lenta. A primeira lei federal que proibiu a fabricação de cocaína nos Estados Unidos foi aprovada em 1914 (três décadas depois dos primeiros casos de dependência química da coca). A proibição completa do pó, com a criminalização do consumo e do comércio, só viria em 1922. Houve proibições similares para medicamentos derivados do ópio, inclusive da heroína, que a princípio foi tão bem-recebida quanto a cocaína.

Nos Estados Unidos, até o álcool acabaria sendo posto na ilegalidade por emenda constitucional em 1919. Embora os resultados da política proibicionista tenham sido catastróficos para todas as drogas, apenas o álcool foi legalizado novamente (por outra emenda constitucional, aprovada em 1934) e só então o alcoolismo (e só o alcoolismo) passou a ser visto como doença. Assim como ocorreu com o público em geral, os médicos viciados não deixaram de existir. Ao longo do século XX foram trocando a cocaína e a heroína por drogas sintéticas e/ou pelos medicamentos psiquiátricos.

Um século e meio depois, ninguém sabe ao certo como fechar a caixa de pandora aberta por Albert Niemann e suas pesquisas com cocaína pura.

Referência

Halsted, William S. (1885). "Practical comments on the use and abuse of cocaine". The New York Medical Journal 42: 294–95. [cópia em PDF]
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