A cura pelo choque

No fim do século XVIII, uma pegadinha numa fábrica deu origem a uma histeria coletiva entre funcionários e vizinhos. O tratamento foi a primeira terapia de choque que se tem notícia.

Por Romeo Vitelli no Providentia. Tradução de Renato Pincelli.

Da Idade Média até meados do século XX, epidemias de histeria coletiva ocorreram em todo o mundo. De danças maníacas a pânicos penianos, essas epidemias têm a estranha tendência a começar de maneira inesperada e terminar sem que ninguém saiba direito o que realmente aconteceu. Apesar de extensas pesquisas psicológicas e sociológicas sobre os vário surtos desse tipo, nunca houve um consenso científico claro sobre o que pode dar início a um episódio de histeria coletiva e como lidar com suas consequências. As crenças sociais e culturais que reforçam histerias em massa costumam aparecer de modos surpreendentes e em lugares inesperados.

Um dos casos de histeria coletiva começou quando uma menina que trabalhava numa usina de algodão em Hodder Bridge, Lancashire (Inglaterra), decidiu pregar uma peça numa colega. Em 15 de fevereiro de 1787, ela capturou um rato e escondeu-o na roupa da outra trabalhadora. A vítima da pegadinha, que aparentemente tinha fobia de ratos, imediatamente teve convulsões que duraram quase 24 horas. Mesmo depois que ela se recuperou, outras três moças que trabalhavam na fábrica começaram a apresentar sintomas idênticos, incluindo “ansiedade, sufocação, convulsões intensas e tão violentas que duravam, sem qualquer interrupção, de um quarto de hora a 24 horas, exigindo quatro ou cinco pessoas para impedir que as pacientes arrancassem seus cabelos ou batessem com a cabeça no chão ou na parede.”

Os rumores começaram a se espalhar à medida que mais pessoas ficavam doentes. O trote com o rato foi rapidamente esquecido enquanto os operários e seus parentes especulavam sobre outras causas possíveis. Quando outras seis garotas e um homem começaram a mostrar sinais de confusão mental, a fábrica foi interditada. Mais trabalhadores adoeceram e a “doença” começou a se espalhar pela vizinhança mesmo sem contato aparente com a fábrica ou seus operários. A população entrou em pânico com a noção de que a epidemia havia sido causada por alguma coisa num dos fardos de algodão recém-aberto na fábrica. Considerando que epidemias de peste negra, febre amarela e cólera ainda eram comuns na época, a ideia de que a doença havia chegado de algum território exótico não parecia implausível. No auge da epidemia, 24 pessoas foram afetadas: 21 moças, duas meninas de 10 anos e um homem.

Entra em cena William St. Clare, um médico bem respeitado pela comunidade local e interessado em distúrbios mentais. Ele foi chamado à fábrica para investigar a epidemia em 18 de fevereiro. Além das ferramentas típicas de sua profissão, o Dr. St. Clare também portava um gerador elétrico movido a manivela. Embora tivesse sido pouco mais que uma curiosidade de salão antes do século XVIII, a eletricidade passou a ser entusiasticamente pesquisada por nomes como Benjamin Franklin, Otto von Guericke [1602-1686] e Stephen Gray [1666-1736], que haviam publicado descobertas radicais e aberto as portas para as eletrizantes possibilidades do uso medicinal e biológico da eletricidade. O choque elétrico como tratamento de condições nervosas só entraria em voga nos séculos XIX e XX, mas St. Claire não hesitou em ser um pioneiro.

Com seu gerador na fábrica, ele aplicou cuidadosamente choques em cada paciente com relatos de convulsões. Segundo seu relatório, “os pacientes foram aliviados universalmente, sem exceção.” Assim que o Dr. St. Clare convenceu todos os trabalhadores afetados de que a epidemia era de natureza “nervosa” e não causada pelo algodão, ela foi imediatamente interrompida. Para facilitar o processo, St. Clare recomendou que todos os afetados “bebessem alegremente e participassem numa dança”. Em questão de dias, a normalidade voltou à fábrica.

Mas como uma simples pegadinha gerou uma epidemia? E como o tratamento heterodoxo do Dr. St. Clare funcionou? Como primeiro caso registrado de doença psicogênica de massa num ambiente industrial, a epidemia de Hodder Bridge é um exemplo interessante de como fatores psicológicos e sociais podem interagir de modo inesperado. O surgimento das fábricas modernas, somado ao tear mecânico inventado por [Edmund] Cartwright [1743-1823] em 1786, levou a mudanças radicais no comportamento esperado no trabalho. Operários de educação precária eram atulhados em fábricas para fazer um trabalho monótono por longas jornadas. Com poucas oportunidades para descanso (definitivamente não havia pausa para cafezinho naqueles tempos pré-sindicais), os trabalhadores eram especialmente suscetíveis a rumores em relação a condições de trabalho perigosas. Em muitos casos, a insatisfação com o trabalho, as mudanças nas condições trabalhistas e até rumores de surtos semelhantes em algum outro lugar eram o bastante para desencadear episódios de doença psicogênica em massa.

Mulheres — especialmente as adolescentes — parecem anormalmente sobre-representadas em incidentes desse tipo, mas os fatores demográficos per se não parecem suficientes para explicar como ou quando esses surtos ocorrem. Embora o Dr. St. Clare não tenha tido a mesma experiência esclarecidas que investigadores médicos posteriores teriam, ele reconheceu a necessidade de descartar possíveis causas para os sintomas. Entre elas, havia possíveis agentes infecciosos ou a contaminação do algodão por alguma substância. Mas como parte das pessoas atingidas não tiveram contato direto com a fábrica ou com seus operários, parecia razoável supor que o surto era apenas de natureza psicológica.

Quanto ao tratamento, o Dr. St. Clare teve que improvisar. Ele sabia que acusar os pacientes de simplesmente inventar seus sintomas agravaria a crise. Fechar a fábrica ajudou a remover a ameaça imediata de contaminação enquanto ele aplicava seu “tratamento”. A eficácia dessa terapia incomum fez os pacientes perceberem que estavam sendo levados a sério ao mesmo tempo que aparentava fazer algo para lidar com suas queixas. Quando ele conseguiu demonstrar que não havia perigo, a fábrica pode ser reaberta e os trabalhos, retomados.

Embora casos posteriores de doença psicogênica em massa não tenham sido resolvidos com tanta facilidade, os problemas de análise e tratamento continuam praticamente os mesmos enfrentados por William St. Clare. Ainda que a verdadeira causa de surtos histéricos nem sempre esteja clara, episódios em fábricas, escolas ou outros lugares onde adultos ou crianças passam muito tempo juntos continuam a acontecer no mundo todo. Enquanto houver rumores se espalhando, é difícil saber se algum dia esses surtos vão deixar de existir.

Nota do Tradutor

Ao fazer uma pesquisa em busca da fonte com o relato original da Epidemia de Hodder Bridge, encontrei a seguinte referência: Country news. In: The Gentleman’s Magazine, 1787 Vol. 57, part I, p. 268.

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comment 0 comments
  • Antonio

    É possível que tal mecanismo funcione também no campo religioso?

    • Renato Pincelli

      Não sou especialista mas me arrisco a dizer que em alguns casos sim. O "tal mecanismo", afinal, não passa do bom e velho efeito placebo: a crença de que você está sendo curado mesmo sem remédio ou tratamento algum acaba sendo reforçada pela cura produzida naturalmente pelo corpo.

  • Gurgel

    Eu imagino que além do efeito placebo nesse caso tenha também a questão da punição do comportamento. Punição vista pelos olhos da psicologia comportamental é um estímulo que diminue a probabilidade do comportamento ocorrer, sendo o choque um estímulo natural de alto índice aversivo, imagino que ele tenha diminuído os casos de histeria coletiva também por este motivo.

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