Seu mestrado é em quê mesmo?

Esta é a terceira parte de um texto que começou segunda-feira (clique aqui para ler a primeira parte), seguiu pela quarta-feira (clique aqui para ler a segunda parte) e se encerra hoje.
Se não tiver lido as duas primeiras, por favor o faça antes de continuar aqui.
CONTINUAÇÃO
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Mesmo que me considerem sinistro ou mórbido, eu consigo ver um lado bom nisso: rapidamente a verdade sobre “medicina alternativa” surgiria (antes tarde do que nunca), ao verem que uma fratura exposta não sara com reflexologia, que cólera mata independente da técnica de acupuntura usada e que homeopatia facilita a contaminação por cólera e esquistossomose mais do que cura catarata (homeopatia não cura catarata).
Pouca gente sabe, mas já existe um termo genérico para designar coletivamente qualquer tratamento ou procedimento de medicina alternativa que comprovadamente funcione de verdade fora da “realidade” mental de alguns hippies: “medicina“.
E, já que comecei a falar em lixo, algo que poucos consideram em seus dia-a-dias: remoção de sujeiras e dejetos.
O que fazer com o lixo? Porque sem dúvida ele há de acumular. E sem água corrente, vasos sanitários não servem para muita coisa além de monumentos em homenagem a uma época distante e confortável.
Em que ponto você teria que começar a se preocupar com a inevitável contaminação da sua única fonte de água razoavelmente segura das redondezas?
Não só com o que for produzido a partir de então, mas também com os bilhões de cadáveres impertubados apodrecendo onde cairam. Alguém terá tido o bom senso de retirá-los?
Fogueiras parecem uma alternativa boa, mas apenas momentaneamente (e tão somente pelo prazer de ver coisas queimando). Além do cheiro insuportável de cabelo queimado, tanta matéria orgânica sendo queimada abertamente sem restrições há de causar problemas mais adiante, desde nevascas de gordura até contaminação do ar.
E ainda o aumento do aquecimento da atmosfera, que vai fazer subir o nível das águas que por sua vez cobrirão os restos putrefatos de seus colegas e conhecidos, aumentando seus problemas de contaminação de água (mais uma dica: num mundo onde a neve é cinza, não beba água da chuva).
Se você acha que pensamento positivo vai ajudar a manter doenças longe, sugiro que consulte um londrino do século 17 e use palavras-chave como: “miasma”, “bubônica” e “Tâmisa”.
Voltando um pouco para a eletricidade que não mais existe abundantemente.
É possível usar motores de combustão para gerar eletricidade, mas depois que gasolina, álcool e diesel acabarem, quem vai refinar e destilar mais? Melhor ainda, quem vai obter o petróleo ou plantar os inúmeros hectares de cana ou milho necessários?
Por aqui nós usamos basicamente hidrelétricas, que teoricamente têm combustível ilimitado fornecido por barragens, mas e quanto a reparos? Elas não foram feitas para durarem para sempre. Quando uma turbina emperrar, quem vai consertar enquanto outra é encomendada? E quem vai se responsabilizar pela construção da encomenda?
E você faz ideia de onde fica a hidrelétrica mais próxima da sua casa? Eu apostaria a metade do meu salário em “não” e a outra metade em “muito, muito longe”.
E mesmo que a usina esteja em perfeito estado, ainda não é tão simples. E as subestações? E as linhas de alta-tensão? Um único poste caído em milhares de quilômetros ou apenas um transformador queimado em alguma dentre centenas de cidades é só o que basta para que a energia permaneça faltando.
O mesmo problema de manutenção é valido para painéis solares e turbinas eólicas, com o aditivo de que esses métodos geram pouquíssima eletricidade.
E se você mora perto de uma usina nuclear que ficou abandonada por muito tempo, eu só lamento. Brilhar no escuro pode lhe trazer certas vantagens imediatas, mas você não vai conseguir aproveitá-las por muito tempo.
“Mas e o conhecimento armazenado? E as bibliotecas?”, eu ouço você perguntando neste momento.
É bem verdade que bibliotecas não são raras, mas boa sorte tentando achar um livro sobre Reparo em Peças Móveis de Turbinas Transdutoras de Núcleo Gerador e melhor sorte ainda tentando aprender e por em prática tirando diretamente de um livro que, sem dúvida, está repleto de jargões e termos técnicos que requerem conhecimento prévio (transdutor: equipamento ou dispositivo que converte um tipo de energia em outro).
O mesmo é válido para os problemas médicos. Quantos livros você acha que existem com a receita para morfina? Se você já tentou instalar um ventilador de teto mesmo lendo instruções detalhadíssimas, sabe o quão difícil seria realizar uma cirurgia de hérnia de disco em outrem.
Ademais, certamente alguém já terá chegado lá antes de você e a biblioteca à sua frente será agora pouco mais que um enorme reservatório de lenha para fogueira (livros queimam supreendentemente bem).
E você sabe que isso é mais que provável. A maioria das pessoas são terrivelmente péssimas em planejar suas necessidades futuras (e surrealmente proficientes em queimar coisas, especialmente livros).
Em resumo, alcançar novamente o nível de sofisticação que temos hoje em dia levará consideravelmente mais tempo do que o necessário para se chegar a ele da primeira vez, pois onde antes tínhamos “engenheiros”, hoje temos engenheiros: florestais, atuariais, de incêndio e combate ao pânico, biomédicos, eletricistas, têxteis, de materiais, hidráulicos e mais umas mil especializações com “engenheiro” no começo.
Onde antes haviam “médicos”, hoje há ortopedistas, traumatologistas, otorrinolaringologistas, reumatologisas, oncologistas, nefrologistas e mais duas mil especializações derivadas da Medicina.
Ferreiros viraram apertadores de botões; Sapateiros viraram encaixotadores; Tecelões viraram vendedores; Cientistas viraram Químicos que viraram misturadores, ou Físicos que viraram digitadores, ou Biólogos que viraram cozinheiros.
Minha avó sabia plantar milho para alimentar galinhas que seriam posteriormente depenadas por ela para serem cozidas e postas à mesa junto com queijo feito por ela a partir de leite tirado também por ela de uma vaca alimentada com grãos que ela plantou, e que iriam somar ao jantar para alimentar a família da minha mãe, que por sua vez sabe escolher, no supermercado com o melhor preço, um frango congelado e os ingredientes mais frescos que irão para a panela juntos para serem cozinhados e transformados em um delicioso almoço para me alimentar.
Eu sei o telefone da pizzaria.
Provavelmente o pai da minha avó sabia curtir o couro das vacas que criava para fazer suas próprias roupas. Eu não sei o número das minhas calças e quem compra minhas camisas é a minha namorada.
Seis ou sete gerações atrás, um ancestral meu talvez usasse um bico de ema modificado para raspar carne dos ossos de um peba.
Ontem eu cortei o dedo tentando separar um pão em dois.
Numa sociedade altamente especializada como a nossa em que fósforos e pão são facilmente obtidos, poucas são as pessoas que sabem, sozinhas, resolver muitos dos problemas que enfrentaríamos num futuro desorganizado.
Não que especialização seja ruim. Não é. Sem ela não teríamos todas essas coisas que irão fazer falta aos seis milhões de brasileiros remanescentes, mas quando o pau cantar, algumas habilidades serão de grande uso. Por exemplo: experiência em primeiros-socorros, caça e pesca, tendências piromaníacas (não me julguem), conhecimentos gerais de botânica, geografia e animais peçonhentos, noções de química, física e aplicações práticas laboratoriais e, em casos extremos, sangue frio para “eliminar” os irremediavelmente feridos num mundo sem centros cirúrgicos ou analgésicos.
Você conhece alguém assim?
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Esta estória completa faz parte da blogagem coletiva da semana de Caça ao Paraquedista do ScienceBlogs Brasil.
Se você estava procurando previsões obscuras para o fim do mundo e veio dar aqui, seja bem-vindo!
Se você gostar de Ciências, aqui é o seu lugar (e não, eu não escrevo tanto assim sempre).

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