Neurônios que tocam saxofone

Outro dia assisti uma palestra muito, mas muito chata.

Minha professora de literatura, pela qual tenho muita admiração mas pouca solidariedade, diz que gostamos apenas do que nos interessa. Acho que não é bem assim e esse é um dos muitos exemplos de quando a realidade bate com o martelo em nossa fantasia. A palestra seria sobre a Autopoiese e sobre Humberto Maturana, dois assuntos que me interessavam muitissimo (a ponto de me fazer acordar mais cedo). Mesmo assim, o chileno que ministrou a palestra foi incrivelmente chato e meu interesse… despencou. Como algo que me interessava tanto pode despertar tão pouco interesse?

Minha professora também costuma ter algo a dizer sobre isso. Segundo ela, ‘problemas existenciais da classe média’ não dão boas histórias. Ela está certa. Ao invés de falar sobre o que levara Maturana a pensar sobre a teoria dos sistemas, o que ela é, ou como ela pode ajudar a resolver determinados problemas, ele resolveu contar qual foi a grande o problema existencial que ele identificou quando aprendeu autopoiese. Não tocou a platéia.

Porém, acabei não acordando mais cedo a toa aquele dia. O chileno contou como os pássaros machos jovens, quando entram na vida adulta, precisam aprender a cantar. Duas coisas são importantes. A primeira é arrumar um professor de canto. Geralmente eles escolhem um outro macho para copiar. A segunda, neurogênese. Apesar de termos aprendido a vida toda que neurônios que não se reproduzem, isso não quer dizer que não produzimos novos neurônios. Durante alguns períodos da vida o cérebro vira uma fabriqueta de neurônios. E em algumas áreas do cérebro, durante toda a vida, ele mantém uma oficina pronta a produzir novos neurônios continuamente.

No dia seguinte, fui pra aula de saxofone e o professor pediu para eu tocar uma música antiga, que eu não tocava há mais ou menos 1 ano. Apesar de tanto tempo sem mexer nela, parecia mais fácil tocar a música. Assim como tem sido mais fácil aprender uma nova música. Fiz a conexão na hora: meu cérebro tinha produzido neurônios saxofonistas!

Uma das vantagens de ser cientista é que a gente tem amigos cientistas de outras áreas. E durante o casamento de uma amiga ex-cientista, aluguei meu querido amigo neurocientista para me explicar essa neurogênese. O Stevens (que e é carioca apesar do nome de gringo), me explicou enquanto tomava a terceira caipirinha de motango, que meu cérebro estava incorporando o saxofone. Eu tinha feito neurogenese! Uau! Existe esperança de eu me tornar um verdadeiro saxofonista então.

Como eu sou um cara de muita sorte e tenho muitos amigos, e muitos são cientistas, acabei conversando sobre meu assombro da neurogênese com a Marília, outra amiga neurocientista. Ela foi bem mais detalhista e isso é bom, mas quer dizer também que eu não entendi tudo exatamente. Porém entendi o que era mais importante. Existe neurogenese sim, mas esse não é o processo mais importante no aprendizado. A plasticidade sinaptica é que é o quente. Não entendeu? Os neurônios parecem polvos. Na verdade uma rede de polvos, cada um com muuuuuuitos tentáculos e cada tentáculo encostando na cabeça de um outro polvo. Os braços do neurônio se chamam dendritos (tem também o axônio) e as junções entre dois neurônios se chamam sinapses. Os neurônios não se reproduzem, mas isso não quer dizer que eles sejam fixos. Eles se movem, podem produzir novos braços ou mudar o local onde os braços se ligam a outros neurônios. Essa é a plasticidade sinaptica. Uma memória é registrada pela reorganização de braços dos neurônios. O aprendizado de um instrumento musical, criam novas conexões que, conforme vão aumentando, diminuem a necessidade de processamento da informação pelo cérebro. A resposta ao estímulo é direta. Fica mais fácil tocar só de olhar para a partitura (no meu caso, para as cifras).


Com neurogenese ou plasticidade sinaptica, a martelada da realidade está na prática. A gente só aprende fazendo! Aprender a teoria não faz com que os sinais ambientais (nesse caso, o Fá sustenido que é a nota para começar Luiza de Tom Jobim) percorra os caminhos neuronais necessários (para que eu aperte as teclas corretas do saxofone, ao mesmo tempo que sopro o tudel, no intervalo de tempo justo e com a intensidade e volume corretos). Ninguém aprende a tocar só com a vontade. Só a prática coloca as sinapses nos locais corretos para facilitar o movimento. Sem tocar, constantemente e consecutivamente, ou seja, sem prática, não se aprende nada. É 1% neurogênese e 99% plasticidade sináptica. É 1% inspiração e 99% transpiração.

Discussão - 5 comentários

  1. Rogério Silva disse:

    Há uns 10 anos, ou mais, assisti a uma palestra com o próprio Maturana aqui no Rio, sobre autopoieses e psicanálise, que foi bastante interessante. Se 'problemas existenciais da classe média' não dão boas histórias, e certamente nem dinheiro, servem pelo menos para podermos entender como se forma uma subjetividade.Essa historia da neurogênese é muito legal, mas quero trazer uma questão de interesse da psicanálise. Trata-se da pulsão anarquista. Uma pulsão que se contrapõe à pulsão de morte, na luta entre Eros e Thanatos. Essa luta organiza as relações entre o indivíduo e a sociedade. A pulsão de morte trabalha contra as formas de vida estabelecidas e contribui para renová-las. O movimento anarquista surge quando toda forma de vida possível desmorona, ele extrai sua força da pulsão de morte e a remete contra ela e sua destruição.A pulsão anarquista se faz á autopoieticamente, guardando uma condição fundamental da manutenção da vida do ser humano: a manutenção da possibilidade de uma escolha, mesmo quando a experiência-limite anula ou parece anular toda escolha possível.O Freud do “Mal-estar na civilização” coloca assim: “Não parece que se possa conduzir o homem, por quaisquer meios que sejam, a trocar sua natureza por aquela de uma térmita, ele se inclinará sempre à defesa de seu direito à liberdade individual contra a massa”.No enigma da esfinge: VIVERÁS NÃO MATARÁS

  2. Mauro Rebelo disse:

    Rogério,pelo que eu entendi, o equilíbrio entre a pulsão anárquica e a pulsão de morte é que se faz autopoieticamente. Acho que a pulsão anárquica é o 'gene egoísta' mesmo. Toda vida é possível, desde que a minha primeiro.

  3. Rogério Silva disse:

    MauroEu vejo um problema na afirmativa “Toda vida é possível, desde que a minha primeiro”. O problema está no a “minha primeiro”. Pressupõe um embate entre eu e outro. A minha proposta é eu com eu.O gene egoísta que Richard Dawkins apresenta é uma teoria evolucionária, mas procura explicar a evolução das espécies na perspectiva dos genes e não dos indivíduos ou das espécies. O gene aí é que é a unidade fundamental da evoluçãoO conceito da Biologia que me parece mais adequado seria o da apoptose que determina a morte de algumas células para que o individuo sobreviva. Você que é biólogo sabe que fisiologicamente, esse suicídio celular ocorre no desenvolvimento embrionário, na organogênese, na renovação de células epiteliais e hematopoiéticas, na involução cíclica dos órgãos reprodutivos da mulher, na atrofia induzida pela remoção de fatores de crescimento ou hormônios, na involução de alguns órgãos e ainda na regressão de tumores. Portanto consiste em um tipo de morte programada, desejável e necessária que participa na formação dos órgãos e que persiste em alguns sistemas adultos como a pele e o sistema imunológico. Na análise da pulsão anarquista o que está em jogo é o que está presente no movimento anarquista. O grito “Viva la muerte” é a metáfora exemplar que o levante nacional dos espanhóis contra Napoleão em maio de 1808 utilizou como toque de reunir. “Viva la muerte” apresenta os dois destinos possíveis da pulsão de morte. Vida e morte. Razão de ser na experiência limite (por exemplo: campo de concentração). Relação entre a fragilidade das razões de viver e sua indestrutividade.Isto Freud Explica.Abs rogerio

  4. Sonia Rodrigues disse:

    Mauro,Dizem que se conselho fosse bom, não se dava, vendia. Mas eu, se fosse você, demitia essa professora de literatura. Porque não vale a pena aprender com alguém que a gente tem pouca solidariedade e vale menos ainda aprender com alguém a respeito de quem a gente precisa vir a publico manifestar hostilidade. Eu, como escritora profissional, para escrever com hostilidade sobre alguém, esse alguém precisa ter me ferido de verdade. Essa sua professora de literatura deve ser uma pessoa muito escrota para um cara legal como você precisar desviar seu texto tão bacana para dizer que não lhe desperta solidariedae. Larga essa mulher de mão, Mauro, porque não vale a pena pagar aulas de gente assim.

  5. Mauro Rebelo disse:

    Engraçado Sonia, eu escrevi que eu admirava ela. Está escrito no texto. Talvez 'falta de solidariedade' possa ser interpretado de maneira diferente do que eu quis dizer. Vou procurar cuidar mais do significado das palavras. Ela não é nada disso que você escreveu. Um beijo, M

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