Só sei que nada sei

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As vezes acontece: você comete um erro grosseiro em sala de aula. A agora? Como se retratar com aqueles 20 elementos que durante duas horas te olharam como se você fosse o ‘Yoda’, ou o ‘Dumbledore’, que é mais da época deles?
Você desce do tablado, guarda a vaidade no bolso e corrige o erro. Por maior que ele seja. Custe o que custar. Mesmo sabendo um monte de coisas, tem coisas que não sabe. Só que mesmo assim tem que dar aula disso. O professor, esse pode errar de vez em quando, mas a informação não pode estar errada, nunca.
A aula era de radiação e radioatividade, e eu estava explicando as radiações ionizantes: Particulas alfa (α) e beta (β), e radiação gama (γ). Entra o slide, um aglomerado de bolinhas de duas cores diferentes representam o núcleo de um átomo com seus prótons e neutros. Quatro bolinhas, duas de cada cor, são lançadas do núcleo. É a partícula alfa. Elas são compostas de dois prótons e dois neutros, por isso possuem massa (4) e carga positiva. Muda o slide, novamente o aglomerado de bolinhas de duas cores representando o átomo. Duas bolinhas são lançadas. Uma não tem nome, a outra chama pósitron e… por um instante, esqueço tudo que tinha estudado me deixo levar pela imagem. As partículas beta estavam representadas por bolinhas também, iguais as que representavam os elementos do núcleo. De repente tudo faz sentido e o pósitron é a emissão de um próton com carga positiva. Levo a confusão adiante e digo que a partícula beta altera o número atômico (que eu antes já havia confundido como A, que é o número de massa, ao invés de Z – esse sim o número atômico, que é o número de prótons que identifica cada átomo), porque emitia um próton. Fiz uma tremenda confusão. Preciso dormir mais, eu penso.
O erro passou desapercebido, porque, no fim das contas, não tínhamos feito nenhuma conta, o que mostraria o erro rapidamente. Mas erro tem perna curta que nem mentira, e ele voltou logo depois pra me assombrar.
Mostro a série de decaimento do Urânio, que emitindo diferentes partículas, muda de Z, de A e de átomo também, se transmudando até chegar no chumbo estável. No caminho, ele passe de Urânio a Tório e volta a Urânio. “Mas peraê, como pode ele passar de Urânio a Tório e depois a Urânio de novo se em cada partícula alfa e beta que ele emite está perdendo neutros e prótons?” Exatamente, não pode. Ou não poderia, no modelo equivocado que eu bolei (porque na verdade, pode sim, e vamos ver como). Tinha alguma coisa errada e não fui nem eu quem percebi. Foi o aluno que fez essa pergunta ai de cima. De repente tudo para de fazer sentido, e como aqueles meninos que trabalham de guia em cidade do interior de Minas ou da Bahia, que pedem dinheiro para conta histórias das cidades mas que se você interrompe ele tem que recomeçar do início porque a história está decorada e não aprendida, eu fico mudo. Devo ter ficado mudo por 15 segundo, porque pareceram 15 min, e em geral essa a gente perde uma ordem de grandeza da percepção de tempo quando entra em pânico (isso da ordem de grandeza do tempo é uma alegoria gente, vamos deixar bem claro).
Disse que não sabia explicar, mas ia descobrir. Sigo adiante. Termina tudo bem. Os objetivos que eu tinha estabelecido para a aula (conhecer as radiações, diferenciar radiação ionizaste, estabelecer o mecanismo de fissão e de efeitos biológicos) tinham sido alcançados. Fui pra casa tenso e chegando aqui vou descobrir o que aconteceu. E o que aconteceu é que eu cometi uma gafe gigantesca, maior do que os erros de português que vira e mexe aparecem aqui no blog. Dei uma explicação totalmente errada sobre o que é a partícula beta, que acabou se revelando incompatível com o decaimento do Urânio 238.
Na verdade a partícula beta tem a massa de um elétron, e pode ter carga negativa, sendo, no caso, o próprio elétron; ou positiva, quando se chama pósitron. É emitida por um nêutron, que no processo se transforma em um próton. E ‘Bazinga‘!!! O problema no decaimento do Urânio está solucionado. O Urânio 238 emite uma partícula alfa com 2 nêutrons e 2 prótons, seu núcleo de 92 prótons passa a ter apenas 90, se transmutando em um núcleo de Tório 234. Um nêutron do Tório emite uma partícula beta (elétron) e se transforma em um próton. Agora o núcleo do Tório passa de 90 para 91 prótons, se transmutando em Protactínio. Tudo bem se você nunca ouviu falar desse elemento, mas ele está lá na tabela periódica, bem antes do Urânio. E é justamente por emitir outro elétron (partícula beta) que um nêutron do Protactínio se transforma em próton. O núcleo de 91 prótons passa a ter 92… que é o número atômico do Urânio, só que agora com 4 nêutrons a menos (2 perdidos na partícula alfa e 1 transmutado após cada uma das duas emissões beta). Se ficou difícil de ver, está tudo na figura ai embaixo.
nuclear_decaimento_uranio_tabela.gifNão satisfeito, o Urânio 234 volta a emitir uma partícula alfa, perdendo mais dois prótons e nêutrons para voltar a ser Tório (agora 230). Tem sérios problemas de identidade esse Urânio. Agora o Tório não quer mais voltar atrás e solta uma partícula alfa também. Com menos dois prótons e 2 nêutrons se transmuta em Rádio que libera uma alfa e vira Radônio, que libera uma alfa e vira Polônio, que libera uma alfa e vira Chumbo (o 214). Uma tremenda libertinagem. Esse chumbo não é estável e quer voltar a ser Polônio. Para isso libera uma beta, perde um nêutron, ganha um próton e passa a Bismuto 214, que libera mais uma beta o leva de volta a Polônio 214. Talvez o negócio deles seja libertar alfas e betas como mocinhas aprisionadas, porque fazem toda essa gracinha de alfa-beta-beta chumbo-Bismuto-Polônio (agora o 210). Mais uma última emissão beta e o Polônio 210 deixa de existir permanentemente para dar lugar ao Chumbo 206, que é estável e encerra o decaimento.
No final das contas estou feliz. O día acabou e eu aprendi mais uma coisa.

Discussão - 11 comentários

  1. alexandre disse:

    legal a história....
    e bacana ter dito que não sabia e ia procurar.
    normal isso. com a prática vamos ficando melhor. a ditadura do "se é professor, sabe tudo!" é cruel. e só dá pra alterar a situação fazendo isso que fez. não bancar o super man por mais que te vejam assim.
    bacana o post.
    alexandre

  2. Munique disse:

    Por que você estava dando aula sobre isso?!

  3. Augusto Mascarenhas disse:

    Parabéns. P mim os melhores professores são aqueles que admitem quando erraram ou quando não sabem de algo. E que vêem isto de forma positiva, como uma possibilidade de aprendizado.

  4. Marcos Salomão disse:

    Mauro na parte em que você escreve "O problema no decaimento do Urânio está solucionado. O Urânio 238 emite uma partícula beta com 2 nêutrons e 2 prótons, seu núcleo de 92 prótons passa a ter apenas 90 ..." Tenho a impressão que você trocou o nome da partícula, neste caso o Urânio emitiu uma partícula alfa, como mostra a sua figura, confere?
    Situação embaraçosa na sala de aula, mas qual professor que nunca passou por ela? Mas a atitude tomada foi muito correta.
    Saudações, Salomão

  5. Alliah disse:

    Olá, Mauro!
    Eu estava nessa aula, mas apenas como uma curiosa saudosista. Eu fui daquela turma de biologia, mas acabei largando o curso e mudando pra EBA, em artes plásticas.
    Anyway...
    É uma atitude louvável assumir o erro, parabéns. Ninguém está livre de errar uma coisa aqui e outra ali, não somos computadores. E mesmo máquinas possuem lá seus bugs.
    Independente disso, a aula foi ótima, principalmente quando você provocou que pensássemos sobre as formas de energia, seus prós e contras.
    Já tinha ouvido falar muito bem das aulas de biofísica, fui conferir e não me decepcionei.
    Abraços,
    Alliah.
    PS.: Já faz um tempo que leio seu blog no feed do ScienceBlogs e não tinha me ligado que você é professor da UFRJ. Descobri agora por culpa desse artigo. Nice surprises 🙂

  6. Bessa disse:

    Que atire o primeiro apagador quem não falou uma besteira sobre o tablado! Minha última foi uma tremenda confusão entre inflamação e infecção na disciplina de fisiologia comparada. Ainda bem que começo o semestre avisando que metade das coisas que irei ensinar estão erradas, mas que eles precisarão esperar o progresso científico para descobrir qual a metade correta.

  7. Flávio Furtado de Farias disse:

    É isso aí, como já foi dito, o melhor é assumir que fez confusão, ou que não sabe mesmo (o que não é incomun).
    .
    E como o Bessa postou, avisar no início do curso que "metade" do que se está afirmando lá na frente já está está errado, e, ainda, que questão de tempo a outra "metade" não terá destino diferente!
    .
    Uma prática que adoto é revelar em bons livros uma série de erros, imprecisões, e outras variedades do tipo.
    Desmontar a inocência da credulidade, e, tornar-los sempre alertas #escoteiros...rsss#.
    Às vezes, ainda, lembro-me de algumas coisas que não sei ou não consigo explicar, e exponho.
    .
    Na busca da verdade, o que aparecem são explicações. A verdade mesmo permanece lá. Inalcançável.
    .

  8. Chloe disse:

    Oi Mauro! : )
    Equivocos fazem parte.
    Legal vc dividir.
    E vê se dorme mais minino! rs...
    Abç.
    C.

  9. Mauro Rebelo disse:

    Num tô dizendo Marcos?! Já consertei. Obrigado.

  10. Pimenta! disse:

    Sr. Professor Dr.,
    Me diverti muito com a parte "e como aqueles meninos que trabalham de guia em cidade do interior de Minas ou da Bahia, que pedem dinheiro para conta histórias das cidades mas que se você interrompe ele tem que recomeçar do início porque a história está decorada e não aprendida"!

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