Você está morto. Bang!

sniper

Uma dor lancinante, e o insurgente Taliban está morto. Sem nenhum aviso, sem nenhum som além de seus próprios gemidos, seu companheiro mal compreende a situação e busca o inimigo à sua volta quando também é atingido.

“Eles nunca saberão, mas sua morte foi decidida a 2475 metros dali. Deitado em uma posição camuflada o Sargento Atirador de Elite Craig Harrison e seu observador viram a equipe inimiga”, escreve Carlos Cardoso em um bom texto descrevendo como a tecnologia permite hoje um alcance mortal inacreditável, combinando balística com uma série de cálculos e medidas em tempo real representando avanços na comunicação e processamento de informação.

“É levada em conta a velocidade do vento, a temperatura ambiente, altitude, temperatura, umidade do ar, rotação da Terra, posição geográfica, hora do dia, densidade do ar e vários outros fatores”, e a bala chega não só muito mais rápido, como muito mais longe que qualquer som de seu disparo. O alvo pode morrer antes de ouvir o som do disparo que o matou.

É um prospecto fascinante, principalmente a nós que crescemos brincando de “polícia e ladrão”, nosso bang-bang local, ou mesmo qualquer jogo onde empunhamos armas e saímos disparando contra alvos virtuais. Associamos o bang à morte. Bang, você está morto. Hoje, você pode estar morto antes do bang.

Mas na cobertura da mídia do décimo aniversário do 11/9, acabei assistindo à entrevista de Ethan McCord.

Em 12 de julho de 2007, dois helicópteros Apache usaram um canhão de 30mm para disparar contra alvos em um subúrbio do Iraque. Em torno de uma dúzia de pessoas, inicialmente classificadas como “insurgentes”, morreram.

Pelo menos duas pessoas no primeiro grupo atingido portavam armas: um fuzil e um lançador RPG. Era uma zona de guerra. Mas algo que os soldados entenderam por ainda mais armas eram apenas os equipamentos de jornalistas da Reuters. Não eram armas, eram câmeras.

A quase um quilômetro, do outro lado da distância que separava os protagonistas deste incidente, avançadas câmeras nos Apache registravam tudo. A chuva de balas de grosso calibre também pegou as vítimas de surpresa. Eles não sabiam, mas já estavam mortos. Bang!

Um dos correspondentes agonizava no chão, talvez ainda sem entender bem o que havia acontecido, quando uma van preta se aproxima. Pessoas saem para recolher os feridos, e dizem os soldados, as armas. Os soldados pedem permissão para atirar. Recebem, e mais saraivadas chegam de surpresa. Os ocupantes da van não sabiam, mas já estavam mortos.

Bang! Havia duas crianças no banco da frente da van.

McCord esteve entre os primeiros a chegar e, contrariando ordens superiores, dedicou seus esforços a salvá-las. Só soube no ano passado, quando o vídeo vazou através do Wikileaks, que as crianças sobreviveram.

Algo que me atingiu é que McCord contou como um de seus colegas chega a dizer que a culpa das crianças serem atingidas era do próprio pai que as levava a um cenário de guerra. Havia uma saraivada de balas de grosso calibre, uma carnificina, e ao invés de fugir com suas crianças, o motorista parou seu carro e tentou se envolver.

Mas McCord estava no chão e não no helicóptero. Ele se manchou com o sangue das crianças, este cuja cor nem pode ser registrada pelas câmeras estabilizadas e em espectros de infravermelho a centenas de metros de distância. Ele sabia que não era assim.

Naquele local não se ouvia o helicóptero. Para o motorista da van, que não havia visto a chuva de balas, havia apenas pessoas agonizando no chão. Os Apache não podiam ser vistos, não podiam ser ouvidos. É a avançada tecnologia bélica. A chuva de balas cai, as pessoas morrem. E por vezes mal se escuta o bang.

Lembrei que toda morte, sem exceção, é uma tragédia, e nenhuma tecnologia desenvolvida para matar deveria ser celebrada ou admirada. É apenas porque algumas vidas provocam tragédias ainda maiores que se considera por vezes aceitável e necessário “terminá-las”. Mas toda morte, sem exceção, é uma tragédia e toda tecnologia desenvolvida para matar é instrumento para levar tragédias a cabo com maior eficiência.

Bang.

Discussão - 4 comentários

  1. Sibele disse:

    Lamentável é constatar que tanta energia, tantos recursos, tanta ciência e tanto conhecimento são dispendidos não para o avanço da humanidade, mas para sua degradação, na matança de seus semelhantes.

    Belo e triste texto, Kentaro!

  2. Kentaro,

    Se vc pensar bem, existe um vínculo organico entre tecnologia e guerra: a cena inicial de 2001: Uma Odisseia no Espaço retrata isto bem.

    Nossas primeiras ferramentas tecnologicas sao facas e pedras de tacape.
    Depois vem as pontas de lança, arco e flecha, etc etc... Mesmo o fogo deve ter sido usado primeiro como arma (contra outros animais inclusive os humanos) antes de ser usado para cozinhar.

    Que a alta tecnologia seja desenvolvida para a guerra faz sentido economico: o capitalismo de mercado não pode investir em prototipos, sai muito caro e nao é economicamente viavel. Entao, os prototipos de novas armas precisam necessariamente de investimento estatal.

    Lembremos tambem que, ao contrário do que disse a nossa miss Brasil, acho que existem guerras justas sim: acho que o terrorismo feito pela Resistencia Francesa e o terrorismo de homens bombas insurgentes na série Galactica (1o episodio da terceira temporada) poderia ser justificado por teoricos da filosofia da etica.

    A opção de um pacifismo radical nao é inspirada nem pode ser justificada pela ciencia, tem mais motivações religiosas, tipo Gandhi e os Quakers.

    Lembro-me de um colega que dizia nao ter medo da Pseudociencia porque a pseudociencia nao é capaz de produzir armas de verdade, enquanto que a verdadeira ciencia era capaz disso. Dado que as nações sempre entrarao em guerra (????), a ciencia e a tecnologia nao corriam riso de extinção.

    Pode até ser verdade isso, mas eu nao usaria isso como um argumento para mostrar aos jovens e ao pessoal religioso sobre como é importante a ciencia e tecnologia e inovacao. Esse argumento na verdade me parece um contra-argumento em prol da ciencia!

  3. Edilson disse:

    Tecnologia certa, no lugar certo, na hora errada!

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