Miscelânea

Garden District, New Orleans

Amigos,

muito tempo estive afastado do blog. Compromissos profissionais, prazos a cumprir, viagens, família. Houve um tempo para leituras e releituras também. Impressionei-me com William Kennedy e o seu “Ironweed” (Cosac Naify, 272 páginas). O escritor retrata a vida do protagonista Francis Phelan e seus trágicos infortúnios. As primeiras páginas do romance são inusitadas e, por si só, valem a leitura. Vencedor do Pulitzer de 1984, Kennedy me era completamente desconhecido. Ótima descoberta.

Li Tony Judt. O seu último livro traduzido para o português, “O chalé da memória” (Objetiva, 224 páginas), é um relato autobiográfico de um tipo de intelectual que não existe mais, comprometido com as suas ideias e não cooptado pelos ditames da vida acadêmica. Sempre acho artificial a reprodução, na capa dos livros, dos comentários dos veículos de imprensa, mas no caso particular de Judt os dizeres do Financial Times são a perfeita síntese da obra: “Audaz, humano e de uma honestidade absoluta”. Em tempos de discussão de cotas raciais, um trecho iluminador: “Universidades são elitistas: selecionam os mais capazes de uma geração e os instruem conforme suas habilidades – abrindo os horizaontes da elite para renová-la. A igualdade de oportunidade e igualdade de resultado não são a mesma coisa. Uma sociedade dividida por riqueza e herança não pode redimir a injustiça camuflando-a nas instituições de ensino – negando distinções de capacidades, ou restringindo oportunidades por meio da seleção – enquanto promove um distanciamento cada vez maior, em nome do mercado. Isso não passa de conversa fiada e hipocrisia”.

Estive em New Orleans. A cidade é qualquer coisa menos EUA. Os estragos deixados pelo furacão Katrina não atingiram a parte central e turística da cidade. Sofreram – adivinhem? – negros,  pobres e negros pobres, principalmente. Há um encanto, uma atmosfera diferente na cidade, fruto da musicalidade e da  herança cultural multiétnica Não foi por acaso que Tennessee Williams disse que “nos EUA existem três cidades: Nova York, New Orleans e São Francisco. Todo o resto é Cleveland”.

Ontem, Alberto Giacometti na Pinacoteca do Estado, em São Paulo. Assunto para o próximo post.           

Contra a nação

Los desastres de la guerra, Goya.

 

Este post poderia ser uma continuação do anterior. A leitura de “A invenção do povo judeu”, de Shlomo Sand (editora Benvirá, 573 páginas), só fez reiterar em mim a convicção de um absurdo chamado “nação”. O autor retoma tema antigo, já tratado com maestria por intelectuais do porte de Eric Hobsbawn e Ernest Gellner, para citar apenas dois. Sand, judeu, professor de história contemporânea na Universidade de Tel-Aviv, demonstra como a formação das unidades nacionais foi e ainda é feita de maneira quase mítica, apoiando-se em narrativas que carecem de qualquer verossimilhança histórica. Por exemplo, é a bíblia que legitima, a partir da descrição da primeira diáspora, a reivindicação do povo hebreu pelas terras da Palestina. É claro que não é esse o único “documento”, mas a passagem ilustra com rigor outras absurdas alegações que respaldam o direito àquela terra. O fenômeno não é exclusivo do “povo judeu”, embora o autor tenha escolhido o tema exatamente por sua isenção e credibilidade: um judeu austríaco, que passou parte da vida em um campo de refugiados na Alemanha e, depois, emigrou com os pais para Israel. Na época de maior beligerância entre franceses e alemães, cita Sand, a França assumiu a ancestralidade gaulesa, quando, na verdade, desse ponto de vista, Sarkozy e companhia são muito mais próximos dos teutões. Os exemplos são infinitos e, infelizmente, a irracionalidade da busca pela “identidade nacional” já resultou na morte de centenas de milhares de pessoas. As delimitações das fronteiras também se baseiam em características “étnicas”, compartilhamento dos “mesmos valores culturais”, de “crenças religiosas comuns”, dentre outras frágeis e equívocas argumentações. É nesse contexto que também estão inseridos os “herois nacionais”, figuras criadas pelo imaginário de uma nação em gestação, que alimenta mitos fundadores e injeta a semente do nacionalismo potencialmente radical. Como escreveu Karl W. Deutsch, citado por Sand, “uma nação é um grupo de pessoas unidas por um erro comum em relação a seus ancestrais e uma aversão comum em relação a seus vizinhos.” As diferenças entre mim e você, caro leitor, são ainda mais sutis do que imaginamos.

Contra a cultura

A crise econômica já é fato consolidado. A análise retrospectiva da história demonstra que é esse o terreno propício para despertar o gigante (quase) adormecido da xenofobia. Os governos dos países em crise, como regra, aumentam o protecionismo contra a concorrência estrangeira e intensificam a vigilância das fronteiras para minimizar a entrada de imigrantes ilegais. O crescente desemprego e a queda da qualidade dos serviços básicos fornecidos pelo estado fomentam o ódio ao estrangeiro. Eis aí o bode expiatório ideal. Muito me assusta a crescente presença de textos na imprensa internacional invocando a a preservação da “cultura europeia”, a necessidade de manter os “bárbaros africanos” longe do território italiano, “berço inviolável do Renascimento”, a defesa das “raízes culturais do Velho Mundo” contra a degradação pelos imigrantes, quase sempre pintados como “muçulmanos fundamentalistas que não hesitam em dar cabo à própria vida em nome de um deus ou de um livro religioso”. Ora, está claro para mim que não existe nada mais falacioso do que invocar a defesa da “cultura europeia”. Simplesmente porque ela não existe. Explico. Há uma evidente confusão entre identidade cultural e cultura. Povos podem apresentar alguns hábitos e costumes que emprestam um denominador comum a eles. Temos o chá das cinco dos ingleses, a siesta dos espanhóis, o amor pela bicicleta dos franceses, o culto à cerveja dos alemães, para citar alguns, apenas. Tudo isso nada mais é que identidade cultural. A “cultura”, por outro lado, não apresenta nenhum  tipo de característica que seja exclusividade deste ou daquele grupo de pessoas. Assim, falar numa “cultura europeia” é algo não só mentiroso como perigoso. A cultura, por definição, é universal, atemporal e não respeita fronteiras. Roubando as palavras de Fernando Savater, “ninguém chama de ‘culto’ quem conhece a sua língua, mas sim àquele que é capaz de falar e ler em várias; nem àquele que sabe tudo sobre o seu bairro, mas sim ao que se interessa por relacioná-lo com o inabarcável universo”. Não há nada que se assemelhe mais entre as árvores do que as suas próprias raízes. Dispam-se. E já somos todos iguais.

Daniel Piza

O ano de 2011 poderia ter acabado melhor. A morte de Daniel Piza, em 30 de dezembro, me deixou muito mal. Preferi o distanciamento de alguns dias antes de escrever qualquer coisa. Às vezes, arroubos emotivos nos traem. Piza não foi só um jornalista cultural. Tal qual Paulo Francis, de quem se dizia herdeiro intelectual, Piza foi um jornalista autoral. Há uma grande diferença aí. O jornalismo cultural pressupõe um ofício técnico que necessita de um profissional bem informado com bom trânsito nos meios e eventos culturais. O jornalismo autoral, por sua vez, depende essencialmente das opiniões emitidas pelo jornalista  que observa e estuda fatos e fenômenos culturais. Esse é o principal motivo que faz muito difícil a substituição de Piza por algum outro colega jornalista.

 Piza iniciou a sua carreira muito precocemente, desde sempre demonstrando um olhar agudo, multifacetado, original. Fez leituras que moldaram o seu jeito de escrever e pensar. Citam Euclides da Cunha, Machado de Assis e Guimarães Rosa, mas negligenciam Caio Prado Júnior, Raymundo Faoro, Celso Furtado, Antonio Candido, Gilberto Freyre, para citar alguns que me lembro aqui. Não citarei todos os clássicos, mas leu (e releu) Montaigne, Shakespeare e Bacon. Em anos recentes, fez leitura crítica original de “O outono da Idade Média”, de Johan Huizinga, edição lançada pela Cosac Naify em 2010. Era versátil e inteligente. Enxergou como poucos a beleza plástica das obras de Anish Kapoor, e, felizmente,  deixou-a registrada em ensaio monumental.

Escreveu 17 livros em sua curta trajetória. Foi vítima de sua própria reputação, pois a revisão da biografia de Machado de Assis (Machado de Assis – um gênio brasileiro, Imprensa Oficial, 415 páginas) foi sabidamente negligenciada, pois afinal de contas o autor era “o” Piza. Engraçado ler na imprensa detratores seus apontando os erros da biografia e reduzindo o Piza a esse livro. Será que essas pessoas que se julgam tão inteligentes, tão sabidas e tão cultas não sabem que existem reedições revisadas? No caso de Piza, não as teremos, infelizmente, mas já havia um projeto para reedição da obra, que não por acaso se encontra esgotada.

Outro lugar comum que pude encontrar em alguns necrológios foi a lembrança de Piza como um jornalista de direita. Nada mais risível. A esquerda boçal brasileira, que, infelizmente, é a maioria, pensa corporativamente. Não há pensamento individual, autoral. Carecemos de um Antonio Gramsci, de um Hobsbawn. Daí o espanto diante de um jornalista capaz de ter opinião contrária aos governantes “de esquerda” (chamar o PT, Luiz Inácio Lula da Silva e Cia.de “esquerda” é fazer corar de raiva os verdadeiros esquerdistas). A mesma esquerda boçal que criticou e atacou um Piza indefeso foi incapaz de registrar que esse mesmo Piza criticou o governo de Alckmin, a inoperância de Serra, a pueril falta de posicionamento da oposição; que esse mesmo Piza elogiou as medidas econômicas e políticas anunciadas pela Sra. Dilma no início de seu mandato; que esse mesmo Piza criticou os desmandos de José Sarney. Piza sempre se posicionou a favor da democracia e defendeu uma sociedade mais justa, com menos desigualdades e maiores oportunidades. Deixava claro em suas colunas o mal estar que lhe provocava a iniquidade brasileira. Mas isso só sabe quem tinha o prazer de ler e de usufruir de seus textos.O domingo está mais pobre.

 

P.S.: Piza, você acredita que além das barbaridades que escreveram a seu respeito também riram por um pretenso desconhecimento seu, que teria dito que Jesus Cristo morreu enforcado? Bom, Piza, caso não saiba, Cristo morreu crucificado – informação muito pouco conhecida e de domínio por somente alguns raros indivíduos ilustrados. Ridendo castigat mores.

2011: meu balanço

 

O próximo ano está aí. O ano que agora finda nos legou algumas lições. De longe, a mais importante delas foi a derrocada do livre mercado fundamentalista e do capitalismo assim baseado. Quem havia enterrado Keynes não poderia estar mais equivocado. Estados se agigantam para que a crise seja detida. Prejuízos privados são convertidos em dívida pública. A globalização mostra que nada mais é que um fenômeno econômico que não pode romper as barreiras políticas. A China se globaliza comercialmente mas mantém o rígido isolamento e cerceamento político. A Primavera Árabe desenha um novo mundo em que a sucessão do poder não pode mais ser garantida em nome de uma questionável tradição. Movimentos como Ocupar Wall Street se rebelam contra a perversa lógica de perpetuação da iniquidade social. E o Brasil, apoiado num discurso panglossiano, não enxerga que os problemas de infra-estrutura e a péssima educação serão entraves intransponíveis em poucos anos.

Na música, 2011 foi um ano de mais do mesmo. Sem comentários.

Na literatura, mais uma decepção com a escolha política do Nobel. Tomas Tranströmer se junta a Herta Müller e a Le Clézio na galeria das escolhas, no mínimo, questionáveis. O lado bom foram as reedições de grandes clássicos em português, em especial “Guerra e Paz” e “Os miseráveis”, ambas pela Cosac Naify. O obra de Tolstói foi, pela primeira vez, traduzida diretamente do russo por Rubens Figueiredo. Pedro Maciel nos legou mais um romance-ensaio arrebatador. “Previsões de um cego” (ed. LeYa) é carregado de lirismo e reforça a vocação do escritor que repara naquilo que outros apenas enxergam. Edmund de Waal e os 264 netsuquês foram outra grata surpresa que acabo de ler. “A lebre com olhos de âmbar” (ed. Intrínseca) é daqueles livros que nos causam tristeza quando terminamos, pois a história poderia se prolongar sem fim, nos legando, homeopaticamente, uma ou duas páginas por dia. Mas dizem que o infinito habita em nós.

Enfim, 2011 não deixará muita saudade. Esperemos 2012. E como escreveu Luis Fernando Verissimo no Estadão de hoje, “e fé em 2012, pois anos pares são sempre melhores do que anos ímpares, uma estatística histórica que eu acabei de inventar para nos animar”.

 

P.S.: Seria injusto com algumas pessoas se não registra-se aqui, no rodapé, que, no plano pessoal, 2011 foi o melhor ano da minha vida. Inesquecível.

 

 

A arte de começar

Não é nenhum segredo que um bom prefácio, uma boa epígrafe, uns bons primeiros parágrafos podem ganhar o leitor mais facilmente. Comprei alguns livros baseado apenas na epígrafe. Hilda Hilst me ganhou assim: “E ainda que as janelas se fechem, meu pai/ É certo que amanhece”. E lá fui eu e a “obscena senhora D.”. Corre-se o risco do engodo, mas um bom começo quase sempre me garantiu uma leitura à altura do início. De modo mais recente, lembro-me de ter folheado uma dezena de lançamentos nas estantes da livraria. Fui fisgado pela epígrafe de “A ausência que seremos” (Cia. das Letras), do escritor colombiano Héctor Abade: “E por amor à memória trago no rosto o rosto de meu pai”, verso emprestado do poeta Yehuda Amichai. O livro não me decepcionou e foi das melhores leituras do ano que finda. Agora, se eu tivesse que eleger o prefácio que mais me tocou e que até hoje não consigo ler sem uma grande emoção citaria este: “ Enquanto, por efeito de leis e costumes, houver proscrição social, forçando a existência, em plena civilização, de verdadeiros infernos, e desvirtuando, por humana fatalidade,um destino por natureza divino; enquanto os três problemas do século – a degradação do homem pelo proletariado, a prostituição da mulher pela fome, e a atrofia da criança pela ignorância – não forem resolvidos; enquanto houver lugares onde seja possível a asfixia social; em outras palavras, e de um ponto de vista mais amplo ainda, enquanto sobre a terra houver ignorância e miséria, livros como este não serão inúteis” (Victor Hugo, Os miseráveis).         

                

Religião, pobreza e ignorância

Círio de Nazaré, Belém, Pará, 2011 

Já nos sabíamos o maior país católico do mundo. E parece que não são somente números. Há práticas, rituais. O círio de Nazaré, em Belém, é o maior acontecimento do catolicismo e do mundo religioso. Os preparativos para o dia de Nossa Senhora Aparecida, que acontece amanhã, mobilizam os noticiários nos principais veículos de comunicação. Há devotos que seguem a pé, de joelhos, de bicicleta, no lombo de burro, rumo a Aparecida do Norte. Pessoas em transe relatam “milagres” e a obrigação do pagamento de promessas “pela graça alcançada”. Os dogmas venceram. Os indivíduos dogmáticos venceram.Há algo de podre no reino de josé sarney. As pesquisas realizadas pelo IBGE demonstram que a religiosidade é maior nos estados do nordeste e entre indivíudos sem ensino superior. Também é muito maior nas famílias com renda inferior a dois salários mínimos. Pobreza e baixa instrução parecem os ingredientes essencias para forjar um crente. É claro – e ninguém precisa me apontar o contrário – que existem indivíduos ricos e universitários religiosos e praticantes. A perversidade, e eis a minha indignação, é que não existe opção para a maioria. Num país desigual como o nosso, pobreza é destino; ignorância, decorrência natural. Infelizmente, a estreiteza intelectual que caracteriza o dogmático é perene e inamovível. E como escreveu Ortega y Gasset, tornamo-nos vítimas da “peculiarísima brutalidad y agresiva estupidez con que se comporta un hombre cuando sabe mucho de una cosa y ignora de raíz todas las demás”.

Leitores em potencial

As feiras literárias nunca estiveram tão em alta como agora. De Passo Fundo a Belém, a derrocada do livro impresso – ou, para usar uma expressão de Vila-Matas, o funeral da era de Gutenberg – parece um devaneio onírico pueril. A pergunta que me faço é se, na mesma proporção das feiras, os leitores também estão crescendo. A consolidação da democracia e a construção de uma sociedade mais justa passa por cidadãos letrados. Não é por acaso que a raiz da palavra “livre” é a mesma de “livro”. Se estamos formando mais leitores e engendrando um novo país, não sei dizer. Mas gostaria de falar de um grave problema: os leitores em potencial. Compartilho da opinião de Ana Maria Machado e João Ubaldo Ribeiro: quem não lê e pode fazê-lo é burro. A semente que quando semeada gera o leitor é o exemplo. Pais alfabetizados que não lêem não podem exigir filhos leitores. Como desejar que o filho goste de legumes e vegetais se o pai não gosta e não come? Outro problema adicional é que não ler literatura estreita os horizontes e reduz o prazer. Explico melhor. Ouvi uma conversa de alguns prováveis leitores em potencial após a saída do cinema. O filme? Meia-noite em Paris, de Woody Allen. Os casais diziam que o filme havia sido muito chato, até que uma mulher do grupo, em torno de 40 anos, disse: “acho que o filme foi chato porque não conhecíamos as pessoas que lá apareciam”. Bingo! Só quem conhecia Ernest Hemingway, F.S. Fitzgerald e sua mulher Zelda, Gertrude Stein e Luis Buñuel podia aproveitar plenamente o filme de Woody Allen e perceber o sentido de invejar a vida na Paris dos anos 20. Pai, mãe: peguem um livro. Pai, mãe: dêem o exemplo. Pai, mãe: um livro pode ser melhor que um prédio com espaço gourmet. Pai, mãe: ler é mais prazeroso que um apartamento com churrasqueira na varanda.

O prurido de Enrique


                          Herisau, 1956

Sua coceira atrás das orelhas, paroxística, intermitente, o incomodava desde criança, mas a nova namorada insistira tanto que lá estava ele. O consultório ficava no primeiro subsolo. A recepcionista não era velha. Sorrindo, perguntou o seu nome e disse que esperasse. O doutor estava um pouco atrasado. Ao acaso, folheou a primeira revista que encontrou. Turismo em Funchal. Preços imbatíveis partindo de Barcelona. Tinha amigos na Madeira e já andava saudoso das tertúlias lá desfrutadas. Próxima página. Paris, ótimos preços, pacote completo para escritores frustrados e que nunca foram outra coisa senão vontade de desaparecer. “Três noites, café da manhã e capa estilo detetive entregue no momento do check-in”, dizia o anúncio do Hotel Montano, 45 Rue Vaneau. Na sala asséptica, solitário e sem noção do tempo que aguardava, mirou um calendário na parede e reconheceu a cidade que ilustrava aquele dia 16 de junho: Herisau, Suiça. Pediu uma caneta emprestada. Reclamaria. Anotaria o nome da editora responsável por tamanho descuido. Ponderou que uma folhinha de consultório não é um livro, um remanescente da quase morta era de Gutenberg. Não, não passaria em branco. Herisau em 16 de junho? Dublin era a única resposta possível. A secretária anunciou a sua vez. Levantou-se e seguiu por um largo corredor. Já na porta da sala, arrependido do favor cedido à namorada, teve vontade de recuar. O doutor esticou o braço e cordialmente se apresentou: “Pasavento”.                                  

Neurocriminologia



Adrian Raine: criminologista da Universidade da Pensilvânia

Está na moda. Foi capa de prestigiosas revistas. A nova ciência se chama neurocriminologia. Há, inclusive, departamentos recém-criados em universidades do hemisfério norte. O advento da tomografia por emissão de pósitrons (PET), método que permite o estudo do metabolismo dos tecidos em geral, revolucionou a oncologia e a maneira como enxergamos o cérebro em atividade. De maneira simplificada, o PET avalia áreas de maior atividade metabólica. Imagine, por exemplo, um câncer. As células cancerosas estão em intenso processo de multiplicação, o que exige energia, leia-se oxigênio e glicose. Assim, o aparelho de PET acusará e fotografará as áreas de maior atividade metabólica, identificando as células malignas. No caso do cérebro, pode-se comparar o metabolismo das diferentes áreas cerebrais entre grupos de indivíduos. Em 1997, pesquisadores norte-americanos estudaram por PET o cérebro de 41 assassinos confessos e 41 indivíduos normais. O resultado do estudo demonstrou que áreas fundamentais para a boa interação e bom funcionamento social – córtex pré-frontal e amígdala cerebral – apresentavam menor metabolismo no grupo dos asssassinos. Curiosos, esses mesmos pequisadores dividiram o grupo dos asassinos em outros dois grupos, agora de acordo com o tipo de procedência remota, bons lares e maus lares (pobreza, negligência, abuso). O grupo proveniente dos lares piores mostrou um metabolismo ainda menor do córtex pré-frontal e amígdala. Na última semana, quando fui convidado a participar de um congresso no sul do país, o pesquisador responsável  pelo estudo citado, Adrian Raine, defendeu que, baseado em seus achados, criminosos com menor atividade metabólica do córtex pré-frontal e da amígdala devem ser isolados definitivamente do convívio social. O problema maior, levantado por alguns dos presentes, é a utilização pré-mórbida desses recursos. Para uma infelicidade, suponha que o seu filho de 12 anos é uma criança cruel, que gosta de fazer mal aos animais, que bate nos colegas de classe e agride furiosamente os seus professores, que se regozija com pequenas maldades. Eis que, por exigência da escola ou de alguma autoridade competente, você deva submetê-lo ao exame de PET  e, bingo: o padrão de funcionamento metabólico é similar ao dos psicopatas, dos assassinos confessos de Raine. Destino traçado e inamovível? E o papel do ambiente – estaria completamente descartado, secundário? O que veio antes, o cérebro “ruim” que determina um comportamento psicopático? Ou um ambiente psicopático – pobreza extrema, violência doméstica, abuso sexual – que “molda” o cérebro tal qual o vemos em serial killers? A velha máxima mendeliana “fenótipo é o resultado do genótipo mais o ambiente” está morta? Estaríamos caminhando, mais uma vez na história, para uma versão moderna e pseudocientífica de eugenia? Penso que não estamos preparados  para responder essas questões, seja ainda do ponto de vista científico ou, de modo mais importante, da perspectiva ética. O assunto deve ser debatido pela sociedade cada vez mais e mais. Plagiando Miguel Nicolelis, não podemos ser  ignorantes em ciência, pois corremos o risco de, por desconhecê-la, tornarmo-nos vítimas de suas limitações e imprecisões metodológicas.                     

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