Legítima defesa de quem?

Parece razoável concordar que todo mundo tem direito a viver. Mas também parece razoável que uma pessoa abre mão de seu direito à vida quando ameaça a vida de um terceiro. Para os defensores da pena de morte, nesse caso seria admissível matar o matador. Mas e quando há mais de um matador?

Suponhamos três pessoas — A, B e C — dispostas como no enigma do trielo. A aponta sua arma para B, que aponta sua arma para C, que aponta sua arma para A, fechando o triângulo. Assim que A levanta sua arma, ameaça outra pessoa e perde seu direito à vida. Em condições normais, C poderia matá-lo de maneira legal, já que age em legítima defesa de B. No entanto, B está mirando em C, o que significa que B abre mão de seu próprio direito de viver. O que significa que A pode matar B mas que C não pode matar A.

Não parece haver modo de resolver isso sob as condições que estabelecemos. Para Russell Christopher, professor de Direito da Universidade de Tulsa e criador deste ameaçador imbroglio, “cada ator tem um direito à vida se ele(a) carece do direito à vida e carece do direito à vida se ele(a) tem um direito à vida”. Christopher, que propôs o problema em 1998, usa este argumento para sugerir que fatores subjetivos — como motivação, crença e conhecimento — devem ser considerados ao fazer esses julgamentos.

Não se trata de um problema puramente acadêmico. Podemos aplicar essas condições à política internacional. Supondo que os atores A, B e C são países, podemos concluir que uma “guerra preventiva”, como a defendida pelo governo americano desde 2001, é logicamente inconsistente quando envolve mais de dois países hostis entre si. O trielo de Christopher é bastante parecido com a atual crise síria.

Digamos que os EUA ameaçam a Síria e esta ameaça a Rússia e esta ameaça os EUA. A conclusão lógica é que, mesmo que quisessem defender os sírios, os russos não teriam o direito moral de atacar preventivamente os americanos. Se os russos atacarem antes, os americanos não têm como perder seu direito de viver porque ainda não atacaram. Por sua vez, ao atacar, os russos é que perderiam a proteção à vida, o que levaria a um ataque sírio (ou pelo menos dos rebeldes sírios). Mas, ao atacar, os sírios também perderiam seus direitos e poderiam ser atacados pelos americanos (pelo menos os que sobrevivessem ao ataque russo). E assim sucessivamente, ad nauseam, até que todos estejam exterminados pelo ciclo triangular de ameaças mútuas.

rb2_large_gray25Referência

CHRISTOPHER, Russell. “Self-Defense and Defense of Others” [“Autodefesa e Defesa de Outros”] Philosophy & Public Affairs, edição da Primavera, 1998.

chevron_left
chevron_right

Join the conversation

comment 0 comments
  • Igor Santos

    Isso me lembra o problema em Direito de "atacar um morto com a intenção de matá-lo".
    Você compra um revólver e dirige até a casa do seu desafeto, arromba a porta de sua casa, o encontra no sofá, dispara quatro tiros nele e foge. O que você não sabia é que vinte minutos antes ele havia sofrido um infarto fulminante e já estava morto, comprovado pela autópsia.

    E aí, o juiz manda prender você por assassinato, que foi sua intenção, ou por vilipêndio a cadáver, mesmo que não-intencional? Se você for condenado por assassinato, seu advogado pode recorrer porque você não assassinou ninguém. Se for preso por vilipêndio, pode alegar que não sabia que estava profanando um corpo morto.

Leave a comment

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Comment
Name
Email
Website