O que andei vendo no Netflix em março

A vida das mulheres da I Guerra, uma investigação anti-terrorista, a rotina de quem tem fadiga crônica, as casas perigosas da Grã-Bretanha e um festival de vergonha alheia em dose dupla

women-at-war

Women at War 1914-1918 [Elles étaient en guerre 1914-1918 | 93 min. | 2014] — Talvez a maior diferença entre a I e a II Guerra Mundial esteja no campo doméstico: foi durante o conflito de 1914-18 que, pela primeira vez, as mulheres deixaram os lares e passaram a executar trabalhos até então exclusivamente masculinos, como o cultivo e colheita nos campos, a organização das telecomunicações e dos transportes e a fabricação de bens industrializados, principalmente de armas e munições. Dirigido por Fabien Béziat e Hugues Nancy este documentário francês nos apresenta a História da I Guerra pelos olhos das mulheres — como a romancista americana Edith Wharton, que criou uma rede de albergues que abrigou 9 mil refugiados franceses e belgas; a jornalista e ativista Louise Bodin, que virou enfermeira numa escola transformada em hospital militar; Blanche Maupas, professora do interior da França, testemunhou o impacto da guerra sobre as crianças e também sobre o currículo das escolas francesas; Louise Thuliez e Marie de Croy, que organizaram uma rede de espiãs na zona ocupada da França, entre as quais estavam as enfermeiras-espiãs Edith Cavell e Gabrielle Petit; e Anna Coleman, escultora, passou a fabricar próteses faciais.

Anônimas como as centenas de milhares de “municionetes” e as 20 mil mulheres de Lille que foram sequestradas pelos alemães e obrigadas a trabalhar em suas fábricas dividem espaço com famosas como Marie Curie e suas unidades móveis de radiologia e Rosa Luxemburgo e sua incansável luta pelo pacifismo. As mulheres que arregaçaram as mangas enquanto os homens praticavam seus rituais coletivos de homicídio e suicídio foram ora louvadas pelas propagandas governamentais, ora desprezadas pelo público, pela imprensa, pelos empresários e pelos militares. Sem dúvida elas escreveram milhares de cartas e diários com seu olhar sobre a guerra. Embora trechos desses documentos pessoais estejam presentes, acabam sendo sufocados nesse filme pelas longas contextualizações, desnecessárias para quem já conhece a história (oficial) contada pelos homens. Apesar de parecer condenar o nacionalismo que levou a Europa àquela carnificina, Elles étaient en guerre não deixa de ter um ranço nacionalista francês. As personagens retratadas são predominantemente francesas ou aliadas americanas e inglesas — não há uma palavra sequer sobre os sofrimentos das inimigas alemãs nem das distantes aliadas russas. Talvez o ponto alto do filme esteja no seu aspecto gráfico: as imagens de arquivo surpreendem por serem coloridas (ou colorizadas) e originárias de fontes inéditas como filmagens aéreas feitas em dirigíveis ou gravações clandestinas feitas por soldados no front. No fim, este documentário mostra que a Grande Guerra não foi assim tão decisiva na inserção das mulheres no mercado de trabalho e na vida política — sobretudo na França, onde as mulheres só conquistariam o voto trinta anos e uma guerra mundial mais tarde.

[youtube_sc url=”https://www.youtube.com/watch?v=bhz0SDzkStc” autohide=”1″ nocookie=”1″]


(t)error

(T)ERROR [84 min. | 2015] — Um século após uma guerra iniciada por uma ataque terrorista, a dúvida permanece: como lidar com o terrorismo? Enquanto todo mundo discutia os programas de vigilância em massa na internet, esse documentário investigava uma ferramenta bem antiga: o uso de informantes pagos. À primeira vista Saeed, vulgo Shariff, é um divertido metre-cuca e vendedor de hot-dogs em jogos de basquete. Ao mesmo tempo, ele também é um informante do FBI e, sem informar aos seus superiores, revela parte desse seu lado obscuro nesse documentário dirigido pela amiga Lyric B. Cabral. Um dos alvos, ou melhor, PDI (Pessoa de Interesse) do X9 é um tal de Khalifa Al-Akili. Apesar de suas origens distintas, os dois têm trajetórias semelhantes. Ex-Pantera Negra, convertido ao Islã ainda nos anos 1970, Shariff atuou como segurança comunitário em uma mesquita nova-iorquina nos anos 1980. Preso por pequenos crimes, acabou recrutado como informante pelo FBI em troca de sua libertação condicional em 2000. Khalifa, por sua vez, é um ex-protestante convertido nos anos 1990 e levanta suspeitas pela posse de armas e um discurso inflamado no Facebook.

Num ato ousado, Lyric passa a atuar como uma agente-dupla para realizar esse filme. Suas entrevistas com Khalifa são realizadas sem o conhecimento de Shariff (e vice-versa). Pode não ser honesto mas só assim foi possível registrar tanto a aproximação quanto a desconfiança mútua entre Shariff e Al-Akili. Enquanto a PDI percebe que está sendo investigada, o informante se dá conta que ele é um sujeito de baixo risco, um peixe pequeno e praticamente inofensivo. Sem sucesso, nosso cozinheiro/espião tenta convencer o FBI a abandonar a investigação. Assim, Al-Alkili acaba preso pelos federais às vésperas de revelar publicamente a trama armada contra ele. Em meio aos telefonemas e mensagens de texto trocadas entre os envolvidos, Cabral apresenta um panorama dos esquemas de infiltração do FBI desde os anos 1960 e dá indícios de que muito desse trabalho é fruto de uma teimosia paranoica, que não se importa em destruir a vida nem de seus informantes nem de inocentes como Tarik Shah, professor de baixo que era amigo de Shariff e foi delatado por ele depois de uma suposta radicalização após o 11/9. No fim, de modo nem um pouco surpreendente, Shariff perde o emprego e tem dificuldades de levar uma vida normal; Al-Aliki é condenado a oito anos de detenção (por porte de armas, não por terrorismo) e a mãe de Shah ainda aguarda a libertação do filho. A questão de como lidar com o terrorismo continua, portanto, sem respostas.

[youtube_sc url=”https://www.youtube.com/watch?v=Qudu8SWE1Ho” autohide=”1″ nocookie=”1″]


unrest

Unrest [97 min. | 2017] — Bem mais específico mas também sem respostas é o caso de Jennifer Brea. Ela teve uma infância normal, viajou bastante na juventude, conheceu o marido durante o doutorado em Harvard. Então, de repente, veio uma febre de 41 graus, seguida de seis infecções em um ano — e Jennifer nunca mais foi a mesma. Ela passou a ter dificuldades de locomoção, mãos que às vezes se fechavam mas não se abriam, perda da fala, hipersensibilidade à luz e aos sons e uma exaustão extraordinária. Depois de dois anos frustrantes de consultas com especialistas que só viam estresse em seu caso, Jennifer ficou acamada e foi então que descobriu, na internet, outras pessoas como ela: eram portadores da síndrome de fadiga crônica ou encefalomielite miálgica (SFC/EM).

Dirigido, escrito e produzido por Jennifer esse documentário conta, com vídeos caseiros, vídeos da internet e entrevistas por Skype, como é a vida dela e de outros portadores de SFC/EM e mostra o que dizem médicos e cientistas que estudam a doença. Entre os casos apresentados, o da dona de casa abandonada pelos amigos e pelo marido após ficar doente, a moça inglesa de vinte e poucos anos que mal consegue se levantar da cama, o jovem fotógrafo que perdeu a voz e os movimentos há um ano e a adolescente dinamarquesa que teve os pais acusados de cárcere privado e foi tirada de casa à força pela polícia. Embora deixe bem claro que a doença não é só coisa da cabeça de quem a tem — um estereótipo tão comum quanto equivocado —, Jennifer não deixa de mostrar os impactos psicológicos da SFC/EM, os momentos de desespero que a levam a acreditar em tratamentos alternativos e as discussões que surgem enquanto ela e o marido tentam decidir o melhor a ser feito. Mais do que um filme autobiográfico, este documentário tem o objetivo bem básico de documentar e expor uma condição que pode ser rara mas nem por isso é menos real.

[youtube_sc url=”https://www.youtube.com/watch?v=JvK5s9BNLzA” autohide=”1″ nocookie=”1″]


mortified

Mortified Nation [83 min. | 2013] – Documentar e expor também são dois objetivos deste documentário. Se tem uma coisa que parece ter acabado depois da internet é o diário repleto de confissões ultra-secretas. Hoje já não trancamos segredos num caderninho decorado com um cadeado, contamos tudo para nossa audiência privativa das redes sociais. Os tempos de privacidade podem ter acabado mas isso não é necessariamente algo ruim. A vergonha alheia pode ser tanto uma fonte de diversão quanto de entendimento entre as pessoas, especialmente entre quem passou pelos mesmos momentos constrangedores. Momentos constrangedores é o que não falta em Mortified: As fantasias da menina cheia de namorados on-line, mas sem nenhum na vida real. O rapazola branco que sonhava em ser gangsta rapper no fim dos anos 1990. A adolescente que roubava lojas por diversão. As aventuras da garotinha que ia limpar casas com a mãe. O negro filho de pastor que se descobriu gay. A garota que frequentava um restaurante mexicano para fugir do relacionamento abusivo com a mãe.

Cartas de amor ridículas, roteiros para um romance perfeito que nunca aconteceu e bandas de rock imaginárias. Tudo isso se encontra nos trechos de diários compartilhados por seus autores no Mortified, um espetáculo que celebra as lembranças embaraçosas da infância e da adolescência em Chicago, Los Angeles, Boston e outras cidades norte-americanas. Neste documentário, acompanhamos os bastidores do espetáculo, o processo de seleção, preparação e curadoria dos “Queridos Diários” que vão ser levados aos palcos. Participações especiais de psicólogos (que explicam a importância dos diários na criação de nossas identidades e na expressão de nossos sentimentos mais íntimos) e de um ex-músico da banda The Cure (que depois de anos tocando músicas para adolescentes agora faz a trilha sonora de Mortified). Divertido e original, este filme também conta a história de Neil Catcher, um dos produtores originais de Mortified, que conheceu a esposa depois de compartilhar nos palcos os versos sobre suas dificuldades para sair com as garotas. No fim, aprendemos que de perto ninguém é normal — e não há nada de errado nisso.

[youtube_sc url=”https://www.youtube.com/watch?v=x3DmdV9XByY” autohide=”1″ nocookie=”1″]


Séries documentais

morti-guide

Mortified Guide [2018 | 1 temporada] — Como se não bastasse quase uma hora e meia de vergonhas alheias, tem mais! Fantasias adolescentes com Bon Jovi, as disputas românticas de um par de gêmeas idênticas, as reviravoltas na vida de um playboy popular, uma fanfic terrível (e erótica) de Harry Potter, os desejos de uma moça religiosa e a menina que, na falta de amigos, resolve criar um porco. Mais recente do que o documentário original, esta série é mais bem estruturada, com o foco inteiramente voltado aos diários compartilhados nos palcos, seus autores e a reação do público. Os seis episódios (cerca de 45 min. cada) são divididos por temas, reunindo relatos constrangedoramente engraçados sobre a descoberta da sexualidade, a vida entre irmãos, a socialização na escola e a cultura pop. Alguns dos causos, registrados em áudio pelo podcast Mortfied, são representados por divertidas animações. Outros, nos palcos, apresentam pela primeira vez músicas ou peças teatrais compostas por adolescentes (às vezes com segundas intenções). Por mais vergonhosos que sejam, todo mundo sobrevive às mancadas da infância e adolescência — e à exposição pública de seus diários.

[youtube_sc url=”https://www.youtube.com/watch?v=ySm87c_GnjE” autohide=”1″ nocookie=”1″]


how safe

How safe is your house [2014 | 1 temporada] — Não tem jeito, todo dia acontece um acidente doméstico na Grã-Bretanha. O resultado são milhares de mortes e milhões de feridos, com prejuízos pra todos os envolvidos. Essa série da BBC investiga, em três episódios (~45 min. cada), quais são os fatores de risco mais comuns nos lares britânicos. Enquanto o jornalista Mark Clemmitt visita casas que foram prejudicadas por reformas mal-feitas e busca desmascarar empreiteiros trambiqueiros e falsos engenheiros de gás, Angelica Bell mostra o trabalho de especialistas que trabalham para prevenir ou remediar os riscos de acidentes domésticos — de agentes alfandegários que barram brinquedos e eletrônicos falsificados a dedetizadores e fiscais da vigilância sanitária. Também são explorados riscos estruturais como escadas traiçoeiras e alarmes de incêndio que não funcionam. Os dois jornalistas ainda fazem entrevistas com sobreviventes de acidentes domésticos. A série me lembrou as reportagens especiais que o Fantástico costumava fazer até a década passada — especialmente no primeiro episódio, cujos testes de brinquedos e produtos eletrônicos contrabandeados lembram os testes do INMETRO no programa dominical global. Embora Clemmitt faça um bom trabalho investigativo para desmascarar prestadores de serviço vigaristas, pouco explica quais foram os erros que cometeram em suas obras, especialmente quando são falhas estruturais. Nesse aspecto, seriam bem-vindas animações ou plantas em 3D para esclarecer o certo e o errado de uma construção segura.

chevron_left
chevron_right

Leave a comment

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Comment
Name
Email
Website