Ainda bem que estão procurando a Fosfoetanolamina


Se você já leu o post anterior, se prepare para mais uma rodada onde ignoro culpados óbvios para escolher alguns bois de piranha. Da última vez, tentei argumentar que políticos cortarem verba de ciência era algo esperado e quem deveria agir são os cientistas. Agora vou tentar convencer que as pessoas buscarem a cura milagrosa da fosfoetanolamina é mais do que esperado e o problema é bem outro.
 
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Se a fosfoetanolamina não é um medicamento, porque as pessoas estão buscando esse tipo de tratamento? E porque um juiz precisou liberar o seu uso? Para entender a relação entre medicamento, pesquisa e terapia, precisamos de alfabetização científica. Em uma definição bem simples, isso envolve que as pessoas saibam o que é a ciência, como ela é feita e a diferença entre ciência e não ciência – para outras definições, referências ao final do texto.
Os resultados do Brasil no PISA 2012 apontam qual o grau de alfabetização científica do estudante brasileiro. Um teste de habilidades de matemática, ciências e literatura aplicado em alunos de 15 a 16 anos de idade de ~65 países (alguns países contam mais de uma vez, pois têm diferentes regiões sendo testadas). Veja no gráfico abaixo como está a compreensão de ciência dos brasileiros, a linha do meio, para os daltônicos.

Pontuação brasileira no PISA, crédito da Folha de São Paulo.
Pontuação brasileira no PISA, crédito da Folha de São Paulo.

A princípio, a imagem é bem animadora, afinal, estamos subindo e chegamos à 405 pontos em 2012. Até sabermos que a média dos países foi de 501 e o Brasil ficou em 58º colocado. Segundo o relatório técnico [pdf] da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE, que aplica o teste), “Por volta de 61% dos estudantes do Brasil tem baixa performance em ciência, o que quer dizer que, no máximo, eles conseguem apresentar explicações científicas óbvias e seguir direções óbvias a partir de evidências.” No máximo. Ou seja, 61% dos estudantes brasileiros não atingem o critério mínimo do que seria a alfabetização científica. Mas o problema não está neles.
Nós humanos temos uma necessidade enorme de ter controle sobre tudo. Sem uma terapia clara e eficaz, pacientes em desespero se agarram ao que puderem. Isso é natural do comportamento humano. Como a ÉPOCA bem colocou em uma reportagem, 80% dos pacientes com câncer recorrem a tratamentos alternativos. Dado o nosso grau de letramento científico, fico muito feliz de que as pessoas estão indo para a USP de São Carlos procurar uma terapia e não para São João do Passa Rasteira para fazer cirurgias espirituais com José de Jesus. As pessoas procurarem um remédio milagroso feito pela USP de São Carlos (e é assim que ele é anunciado) é só mais um sinal de que as pessoas estão dando credibilidade crescente à ciência.
Em notas, a Fiocruz, a USP e o IQSC-USP (IQSC-USP) rapidamente tiraram o corpo fora, explicando que não tem nada a ver com a decisão e que fosfoetanolamina não é remédio – obrigado ao E-Farsas pela coletânea. Estão certas em fazer isso, mas poderiam também ajudar a alfabetizar cientificamente o público, como as instituições que são. Perderam uma excelente chance de usar a credibilidade que têm entre quem busca o medicamento para explicar como se dá o processo de pesquisa científica e desenvolvimento de fármacos. E a verba necessária para isso. Ainda mais quando faltou alfabetização científica até para quem regula, ao menos para entenderem a importância das etapas científicas para produção de um medicamento.
Basta uma busca no site da Fapesp para ver quais os resultados dos testes com a fosfoetanolamina reunidos na forma de artigos, ou seja, os resultados que foram checados por outros cientistas:
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Como marquei na figura, até hoje a fosfoetanolamina foi testada por esse grupo em apenas duas condições: culturas de células e camundongos. O padrão para um laboratório universitário. E pela ordem de artigos, autores e tipos de teste, as publicações também parecem o padrão de laboratórios universitários. Por participar dos artigos, o Dr. Gilberto Chierice, professor aposentado do Instituto de Química de São Carlos (IQSC-USP), deveria saber que, quando diz “A fosfoamina está aí, à disposição, para quem quiser curar câncer”, está falando de mais de 200 doenças diferentes. Anunciar que um composto cura câncer (em geral) quando se testou em 5 tipos de células tumorais, mesmo se funcionasse em todas elas, é como anunciar que você encontrou uma cura para mortes na guerra porque inventou o colete à prova de balas. Tem mais outros 199 jeitos de morrer que não são foram testados. E isso se funcionasse, pois não sabemos.
Basta uma definição da Anvisa para o que é o primeiro tipo de teste que um medicamento precisa passar: “Fase Pré-clínicaAplicação de nova molécula em animais, após identificada em experimentações in vitro como tendo potencial terapêutico.” Como a fosfoetanolamina foi testada apenas em camundongos, para cumprir essa primeira etapa, ainda precisaria ser testada em outros animais maiores, como furões, beagles e macacos. A rigor, a fosfoetanolamina não fez testes necessários para poder ter uso veterinário. E, ironia das ironias, se quiséssemos passar por essa primeira fase de testes no Brasil, não poderíamos, porque graças à falta de alfabetização científica de outras pessoas, o Instituto Royal, o único centro que poderia fazer isso foi fechado.
Agora entramos na parte do texto que julga a culpa da indústria farmacêutica em bloquear o acesso pela população à um medicamento milagroso que cura o câncer. Você faz ideia do quanto custaria à indústria farmacêutica pagar por esse interesse? Segundo o Tufts Center for the Study of Drug Development, entre 2000 e 2010 nos Estados Unidos, o custo de desenvolvimento de um medicamento até a venda no mercado foi de pouco menos de $2,6 bilhões ao longo de mais de 10 anos. Na cotação do dia, de R$3,89 por dólar, o custo médio de desenvolvimento de um medicamento é de mais de R$10 bilhões, ou mais do que o orçamento do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação recebeu nos anos gordos de 2013 e 2014. É mais ou menos isso que custaria para desenvolver a fosfoetanolamina como medicamento, se passasse em todos os testes. Nenhuma farmacêutica vai querer bancar isso sem ficar com o dinheiro das vendas (entenda-se da patente) depois. E isso depois de estarem muito convencidos de que é uma droga promissora, ou seja, mais testes.
Ou seja, o presidente do Tribunal de Justiça de São Paulo, desembargador José Renato Nalini, liberou para uso por pacientes um composto que não poderia ter nem uso veterinário. Porque, nas palavras dele, “há necessidade de proteção do direito à saúde.” Se entende que a saúde é prioritária, deveria pressionar as agências a financiar a pesquisa necessária para que esse medicamento fosse viabilizado. Familiares dos doentes procurarem qualquer alternativa para curar entes queridos é mais do que esperado. Mas distribuir fosfoetanolamina agora, sem os testes necessários, na pressa, porque vidas precisam ser salvas, é como forçar o lançamento do paraquedas porque pessoas estão morrendo e ter a chance de ter isso no mercado:
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Mas dilvulgação científica não faz falta.
 
Referências:
Norris, S.P. E Phillips, L.M. (2003) How literacy in its fundamental sense is central to scientific literacy. Science Education, v. 87, n. 2, p. 224-240.
Cachapuz, A. et al. (2005) A necessária renovação do ensino de ciências. Editora Cortez, pg 17-32

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